A pandemia, o negacionismo e os direitos humanos

No enfrentamento à Covid-19, o governo federal brasileiro tomou uma série de medidas que demonstram o descaso diante da vida humana, analisa especialista
Ilustração: Alexandre Coelho
Ilustração: Alexandre Coelho

Em pouco tempo, a humanidade se viu rendida diante da pandemia da Covid-19, que exigiu uma capacidade adaptativa ímpar e clamou a todos pela valorização da vida e dos direitos humanos. Alguns foram transformados pelo amor, muitos pela dor e pelo luto, mas, infelizmente, outros continuam com posturas negacionistas que ajudaram a aumentar os números de mortos.

As consequências da pandemia foram particularmente severas no Brasil, país marcado por dificuldades econômicas extremas, incertezas políticas, disparidades sociais crescentes, desemprego e dificuldades de acesso a uma vida digna. Tudo isso torna urgente o questionamento político e jurídico diante do comando do governo federal que reafirma o negacionismo, questiona sem fundamento a cura pela vacina, trata com descaso e dolosamente a perda de mais de meio milhão de vidas. O negacionismo do governo brasileiro afronta garantias constitucionais e a obrigação de proteção dos direitos humanos.

Os organismos internacionais de gestão da saúde uniram-se, amparados pela ciência, para buscar a cura o quanto antes. A maior resposta institucional em prol de uma governança global foi dada pela Organização Mundial da Saúde (OMS). O fato de a Covid-19 ter sido reconhecida como uma pandemia fez com que grande parte dos líderes mundiais, mesmo diante de suas políticas competitivas internacionais, reconhecesse o importante papel da solidariedade global em saúde.

Essa postura está na contramão da solidariedade global, tão necessária para o enfrentamento da pandemia e para a defesa dos direitos humanos universais, conforme determinam a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 e a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Os chefes de estado nacionalistas e populistas adotaram uma estratégia comum de rejeição das evidências científicas, minimizando o potencial lesivo do vírus para validar medidas que contrariam as orientações da OMS. Muitos desses líderes assumiram posturas deliberadas de ataque à ciência, tomando medidas que agridem a saúde do povo. No Brasil, há uma rejeição da postura pró-saúde com a tomada de providências ativas para desmontar as infraestruturas de saúde pública, justificando a redução de recursos pela suposta priorização da economia.

Os populistas nacionalistas reafirmam a postura de negar os direitos humanos e a democracia com discursos que estimulam o racismo, a xenofobia e o preconceito. No Brasil, por exemplo, Bolsonaro posicionou-se contra as medidas de isolamento social, cientificamente comprovadas como eficazes. O governo federal falhou na efetivação do direito à saúde diante da Covid-19, negligenciando os cuidados e o acesso a recursos de saúde com a indução da escassez de fornecedores, equipamentos e suprimentos, até mesmo oxigênio. Além disso, investiu recursos públicos em remédios com ineficácia científica comprovada.

Em resposta à pandemia, o governo federal brasileiro tomou uma série de medidas que demonstram o descaso diante da vida humana. O presidente negou a gravidade da pandemia, adotou postura contrária às medidas de isolamento social, criticou o uso de máscaras, defendeu o tratamento precoce comprovadamante ineficaz, incentivou a população a desrespeitar as regras sanitárias, questionou a eficácia de vacinas e atrasou sua compra, sob a falácia de que estaria priorizando a retomada da economia.

São inúmeros os questionamentos a respeito do que pode ser feito diante da ação dolosa do presidente da República contra a saúde e a vida. As instituições estatais estão se movimentando no sentido de investigarem os fatos, analisarem as provas e discutirem o que é possível dentro do sistema constitucional. Entretanto, se não houver uma reação institucional, pode-se buscar uma responsabilização das autoridades brasileiras, entre elas o presidente, pelo Tribunal Penal Internacional (TPI). Seria o Direito Internacional alternativa viável para a responsabilização dos acusados?

Para responder a esta pergunta, é importante compreender como funciona tal órgão. O TPI é um tribunal de competência internacional criado em 2002 e que tem o objetivo de julgar indivíduos acusados de crimes de sério interesse internacional, sendo eles os crimes de guerra, agressão, genocídio e contra a humanidade.

Mas será que há uma banalização da palavra genocídio diante da conduta do governo brasileiro na gestão da pandemia, como afirmado por alguns juristas? Segundo o artigo 6º do Estatuto do TPI, genocídio é o ato “praticado com intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso”, por meio de “ofensas graves à integridade física ou mental de membros do grupo” e “sujeição intencional do grupo a condições de vida com vista a provocar a sua destruição física, total ou parcial”. As evidências, relatos e provas levantadas pela Comissão Parlamentar de Inquérito da Covid nos colocam diante de indícios significativos de que haja o crime de genocídio em curso no Brasil.

Além disso, o Estatuto do TPI entende em seu artigo 7º como crime contra a humanidade o ato de extermínio “quando cometido no quadro de um ataque, generalizado ou sistemático, contra qualquer população civil, havendo conhecimento desse ataque”. Em relação ao tratamento empregado aos povos indígenas durante a pandemia, por exemplo, percebe-se a sujeição reiterada desses povos a condições que podem ocasionar o seu extermínio.

Existem contundentes documentos e testemunhos de que o governo brasileiro não tenha simplesmente fracassado na gestão da pandemia, mas tenha dolosamente adotado uma postura atentatória à vida e aos direitos humanos. Na abertura da 76ª Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas, o discurso do presidente foi marcado pelo negacionismo, inverdades e contradições. Jair Bolsonaro reafirmou a defesa do “tratamento precoce”, além de se mostrar contrário às medidas sanitárias de contenção da doença. Ele afirmou, ainda, ser a favor da vacinação, mas declarou a todo o momento não ter se vacinado. Essa suposta aprovação da vacina é questionável, uma vez que o governo sempre se mostrou contrário à vacinação.

Mas o presidente do Brasil e os membros do governo devem ser condenados no TPI por genocídio e crimes contra a humanidade? Não se pode condenar antes de uma investigação e do devido processo legal garantido aos acusados. As evidências e provas até então levantadas, no entanto, são importantes elementos a serem considerados diante das denúncias já apresentadas ao TPI e para futuras acusações que possam ser feitas. A má gestão em saúde pública pode ser percebida como um crime contra a humanidade pelas circunstâncias que comprovem o dolo na disseminação de uma doença infectocontagiosa, provocando milhares de mortes. Não se pode condenar quem ainda não foi julgado e essa garantia se aplica a todos, mas pode-se afirmar que há indícios dos delitos mencionados e o presidente da República, juntamente com inúmeras autoridades do governo brasileiro, precisam ser investigados.

Parafraseando as palavras do próprio presidente durante o seu discurso na ONU:
“A história e a ciência saberão responsabilizar a todos”, mas ressalta-se que, pelo Direito, e não fora dele se efetivará essa responsabilização.

Profª Renata Furtado de Barros

Coordenadora do curso de pós-graduação em Direito Internacional e Estudos Humanitários Diplomáticos do IEC, analisa a atuação do governo federal brasileiro no enfrentamento à Covid-19.

A Revista PUC Minas não se responsabiliza pelas opiniões expressas pelos autores nos artigos assinados.

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