Fake news e discurso de ódio: De Roma ao Capitólio e a água com limão

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“Corte o limão em três partes e coloque em um copo, depois despeje água quente e transforme-a em água alcalina, beba todos os dias. O tratamento com esse extrato destrói apenas células malignas (…)” E assim começava a epopeia curandeira que nos foi apresentada na pandemia. A mentira contada mil vezes torna-se uma verdade, como disse (ou acredita-se ter dito) Joseph Goebbels, ministro da Propaganda na Alemanha de 1924. O recurso de retórica usual na política, economia e na história alcançou a ciência e colocou em xeque o conhecimento produzido e testado.

Com ares de novidade, as fake news (epíteto para notícia falsa ou deturpada) marcam posição nas redes sociais, noticiários, rodas de conversa, especialmente sobre os eventos da política e ciência. Até 2016 este fenômeno era conhecido como pós-verdade e, com vestes mais cultas, descrevia a opção do emissor de criar e modelar a opinião pública, afastando os fatos objetivos por terem menos influência, apegando às emoções e crenças pessoais como recurso de convencimento. Mas isso não é novidade. As notícias falsas, deturpadas ou incompletas estão presentes na humanidade ao menos desde o Império Romano. Questiona-se se Nero realmente foi o incendiário de Roma? Há indícios que sequer estivesse lá! Os rituais dedicados ao Deus Baco (Bacanais) eram orgias regadas a vinho e sevícias? Sugere-se que os mitos sobre este festival era um contra-ataque político/moral, pois congregava grande parte da aristocracia romana.

Embora usado como um recurso de retórica, engajamento e reforço discursivo, em 2016, com a ampliação da ressonância das redes sociais administradas por algoritmos de modelagem e perfilamento de dados, o debate ganha espaço no cenário acadêmico e legislativo que busca compreender e disciplinar este novo modus social. Se os millennials (nascidos na época do Chacrinha) ocuparam seu ócio digital nas águas calmas do Orkut e do MSN, a geração Z (nascidos em tempos de Malhação) navega nas tormentas do Facebook, Instagram e Whatsapp, que implementaram um misto de pós-verdade e fake news, incutindo a ideia que a teia digital é uma zona franca para manifestação de pensamento e opinião, que nada mais são, muitas vezes, discurso de ódio.

As discussões políticas, religiosas e morais sempre foram desagregadoras. Condensando-as em uma bolha seletiva de relacionamento num coletivo integrado por afinidades previamente selecionadas para formar um conjunto uniforme “pensante”, faz surgir combatentes do conhecimento científico, histórico e econômico. Revelações trazidas pelo Facebook Papers indicam que a big tech não se ruboriza ao incentivá-los, induzindo polarizações, cancelamentos, recomendando conteúdos capazes de motivar o engajamento de acordo com “bandeira” do usuário, deixando a cargo da “inteligência” algorítmica a função moderadora: já sinalizou tiroteios em massa como jogos de paintball, brigas de galo como acidentes de carros e mães amamentando como conteúdo sexual, dentre outros.

Os papers também mostram que em 9 de novembro de 2020, 10% dos usuários Facebook faziam parte do surto coletivo-psicótico-digital-real-teorista-conspiracionista, divulgando factóides sobre fraudes nas eleições americanas, o que resultou na inimaginável invasão do Capitólio e na morte de cinco pessoas, dentre elas, um policial por espancamento. A rede social, embora alertada pela equipe (humana) responsável, nada fez, pois não possuía um manual para atuação em crises de tráfego.

A liberdade de expressão é uma garantia inatacável prevista no art. 5º, IV da CF vocalizada como autorizativo preventivo para expressar opiniões e discursos. Mas, ela também veda o anonimato, assegura o direito de resposta proporcional ao agravo e também à reparação pelos danos morais e materiais sofridos pelo ofendido (art. 5º, V). Não é e nunca será um autorizativo para o discurso de ódio propalado contra grupos identitários por meio de notícias falsas.

Em que pese existir um esforço legislativo para disciplinar esses fenômenos, já existe uma estrutura protetiva vigente prevendo punições em razão de atentados contra honra (calúnia, injúria e difamação), racismo e injúria racial e o próprio crime de divulgação de fake news no ambiente eleitoral. A estimulação ou produção de pânico anunciando desastre ou perigo inexistente, ou praticar qualquer ato capaz de produzir pânico ou tumulto também é punível, como é também, numa análise mais rigorosa, a prescrição da água com limão, passível de ser enquadrada como crime de curandeirismo previsto no Código Penal.

Ou seja, por mais que a mistura alcalina sugerida para tratamento da Covid possa sugerir exercício da liberdade de expressão, o recomendado é sempre prudência ao divulgar conteúdos, pensamentos e ideias, usando o exercício magistral da empatia, evitando causar ao outro aquilo que não quer que lhe cause.

Wesley de Paula

Mestre em Direito pela UFMG, o coordenador da pós-graduação em Direito Digital, Gestão da Inovação e Propriedade Intelectual do IEC PUC Minas lembra, que o fenômeno das fake news, embora tenha ganhado espaço nas redes sociais nos últimos anos, não é uma mazela social recente. Foto: Alex Stoppa.

A Revista PUC Minas não se responsabiliza pelas opiniões expressas pelos autores nos artigos assinados.

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