O lixo nosso de cada dia

O fechamento dos lixões no Brasil está previsto para 2024. A nova legislação traz a urgência do tema e levanta questões sobre os resíduos sólidos, excesso do consumo e afins
Distrito de Azurita, Mateus Leme: uma das 11 cidades que descartam lixo de maneira irregular na região Sudeste, de acordo com a Abetre | Foto Raphael Calixto
Distrito de Azurita, Mateus Leme: uma das 11 cidades que descartam lixo de maneira irregular na região Sudeste, de acordo com a Abetre | Foto Raphael Calixto

Distrito de Azurita, em Mateus Leme, a cerca de 60 km de Belo Horizonte, capital mineira. Os urubus dividem espaço com Rafael Teodoro, de 24 anos, e Brenda Oliveira, 19, que esperam por mais um caminhão de lixo vindo da cidade. Segundo a Associação Brasileira de Tratamento de Resíduos e Efluentes (Abetre), Mateus Leme é uma das 11 cidades que ainda descartam lixo de maneira irregular na região Sudeste do Brasil. São cerca de 20 toneladas de resíduos sólidos despejados, por dia, no local, que não têm destinação correta para o chorume e nem tratamento adequado para o lixo. Em uma semana em que Minas Gerais atingiu recordes de temperatura e teve umidade de deserto, a poeira e o calor tornavam o trabalho dos catadores ainda mais degradante. Quando foi pedido informações sobre o perfil de quem trabalha no local, Brenda, que depende desta fonte de renda desde os 14 anos, explicou: “Aqui no lixão trabalha quem precisa. Não é por idade. Tem de idoso até criança. Eu queria era estar na minha casa”.

Segundo o Marco do Saneamento, instituído pela Lei Federal nº 14.026, de 15 de julho de 2020, até 2024, está previsto o fechamento dos lixões no Brasil. A nova legislação entrou em vigor no mês de agosto e pretende dar solução a questões sobre a destinação dos resíduos e os riscos ao meio ambiente. Trazendo a urgência do tema, lança olhar, ainda, sobre o excesso do consumo e a necessidade de respostas para quem ainda vive do lixo.

Como Brenda e Rafael que, junto com os demais catadores, aguardavam pela chegada de um caminhão cheio de lixo em Azurita. “Olha aí como a gente faz que já fica explicado”, disse Rafael, respondendo à pergunta sobre como é a rotina no local. Observar o trabalho de um catador de lixo é refletir imediatamente sobre o destino do que consumimos e o sentido de uma sociedade voltada para o consumo. “Separo tudo. Lata, papelão e plástico principalmente”, gritou Rafael enquanto corria para alcançar o caminhão. Rafael e Brenda são casados. Eles preferem não revelar o nome de sua filha, mas compartilham que é por ela que estão em busca de renda e sobrevivência. Toda a renda da família, que chega a um salário mínimo, vem do lixão. A menina fica em casa com a avó enquanto os pais garimpam tudo o que pode ser vendido.

Tarcísio José dos Santos, 72 anos, conduz o trator utilizado para compactar as camadas de rejeitos | Foto: Raphael Calixto

Junto aos catadores, Tarcísio José dos Santos, 72 anos, também aguardava no sol quente para desempenhar suas funções. Ele sabe bem como é a rotina no lixão de Mateus Leme, no qual trabalha há 13 anos. Morador da região há quatro décadas, ele conduz o trator utilizado para compactar as camadas de rejeitos. “Quando chega o caminhão, espero os catadores e depois venho com o trator. Os itens poderiam vir separados de uma vez. Assim, as pessoas não precisavam subir no caminhão e remexer o lixo”. Ele ainda aguarda uma definição da prefeitura sobre o fechamento do lugar em que trabalha. O receio é ficar sem trabalho quando o lixão fechar: “Estou quase aposentando, mas preciso trabalhar”. Todos estão sem máscara de proteção contra o coronavírus durante as entrevistas, mas esse é apenas um detalhe que demonstra a falta de condições para uma vida minimamente digna. Afinal, com ou sem pandemia, a fome e a necessidade de levar o alimento para casa não mudam.

Responsabilidade socioambiental

O especialista nas áreas de meio ambiente e sustentabilidade, professor André Rocha Franco, avalia como é preocupante a situação dos resíduos sólidos no Brasil. Para ele, tratar adequadamente os resíduos gerados pela sociedade é garantir efetivamente o futuro da nossa e das próximas gerações. “Os lixões são formas inadequadas. Esses espaços não possuem as estruturas necessárias para o tratamento dos resíduos. O lixo é lançado a céu aberto, sem quaisquer medidas de proteção ambiental e da saúde da população”, afirma. Segundo o Atlas da Destinação Final de Resíduos, levantamento publicado em 2020 pela Associação Brasileira de Empresas de Tratamento de Resíduos e Efluentes (Abetre), cerca de 40% dos resíduos sólidos ainda têm destinação inadequada no Brasil. Franco, que coordena os cursos de pós-graduação lato sensu do IEC PUC Minas em Educação Ambiental e Sustentabilidade e em Gestão Ambiental Integrada, aponta inúmeros impactos ambientais negativos, como a contaminação dos cursos d’água e da atmosfera, a proliferação de agentes patogênicos, a descaracterização da paisagem e ressalta o impacto social dessa forma incorreta de disposição dos resíduos. “Os catadores de materiais recicláveis ainda continuam marginalizados. A cadeia econômica acaba concentrando os ganhos na chamada indústria da reciclagem”, completa.

De acordo com o levantamento da Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais (Abrelpe), a quantidade de resíduos sólidos urbanos destinados inadequadamente no Brasil cresceu 16% na última década. O montante passou de 25,3 milhões de toneladas por ano em 2010 para 29,4 milhões de toneladas por ano em 2019. O professor André alerta: “Além dessas questões, a disposição final em lixões resulta num ônus para os cofres públicos da ordem de bilhões, em virtude dos gastos destinados para a reversão dos impactos ambientais e sociais negativos causados pelo descarte irregular”. Os dados da Abetre comprovam: a utilização de lixões prejudica diretamente a saúde de 77,65 milhões de brasileiros atualmente, e gera um custo ambiental e para o sistema de saúde de cerca de US$ 1 bilhão por ano, informou a última edição do Atlas da Destinação Final de Resíduos.

O professor André ressalta a necessidade de investimentos e o cumprimento de metas de desempenho previstas pelo novo marco legal. “Os aterros sanitários envolvem projetos de alta complexidade técnica e possuem custo elevado. São empreendimentos planejados para receber os resíduos sólidos com solo nivelado e impermeabilizado, o que impede a infiltração do chorume. Os líquidos (chorume) e os gases gerados pelo fenômeno de decomposição dos resíduos orgânicos podem, inclusive, ser reaproveitados economicamente – até mesmo na geração de energia elétrica”, defende.

Sociedade do consumo

E qual o impacto das nossas ações individuais na quantidade de lixo que o Brasil produz? Em uma semana, os brasileiros jogam no lixo 1,52 milhões de toneladas de resíduos, diz o Atlas da Destinação Final de Resíduos. Para os próximos anos, inclusive, há tendência de aumento na quantidade de lixo produzida no Brasil e, até 2050, o país observará um aumento de quase 50% no montante de resíduos sólidos, em comparação ao ano base de 2019. “O modelo de consumo desenfreado, tratado, muitas vezes, como sinônimo de qualidade de vida e bem-estar social, resulta numa geração exponencial de resíduos, incompatível com a capacidade do meio ambiente”, acrescenta o especialista em meio ambiente, professor André Franco.

Compartilhando dessa avaliação, a professora Fernanda Cabral, que atua nos cursos das áreas de Comunicação e Marketing do IEC PUC Minas, diz que o consumismo exagerado é uma consequência da sociedade contemporânea. “Vivemos em uma sociedade agorista: o que me interessa agora e o que me encanta, daqui a cinco minutos, não vai fazer o mesmo efeito. No consumismo, você consome com velocidade e intensidade. Com isso, descartamos com velocidade e intensidade porque não conseguimos armazenar tudo o que é consumido”.

Pensando no impacto das ações individuais na sociedade e na força das ações coletivas, Sônia Mariquito Naime, que é moradora da cidade de Florestal, a 60 km de Belo Horizonte, decidiu agir. Ela faz parte de um grupo de moradores voluntários que se organizaram para estabelecer a coleta seletiva na cidade, que tem hoje cerca de seis mil habitantes. “O volume de lixo gerado estava aumentando muito e ocupando áreas grandes de depósito a céu aberto. Desde 2002, somos um grupo pequeno de voluntários que faz as articulações de apoio moral e logístico à Associação de Triadores de Materiais Recicláveis de Florestal (Astriflores). Nossa associação de catadores tem o apoio operacional da prefeitura. É um movimento gerador de emprego e renda local”. Para ela, um problema grave como o lixo e intrínseco à sociedade como o consumismo pede ações urgentes.

De fato, a reversão de modos de vida atrelados ao consumismo e a consolidação de ações voltadas para o bem comum é uma responsabilidade coletiva. A preservação da natureza e da justiça social e ambiental depende disso. “Geramos todo dia um problema sério com tanto resíduo produzido. Atuar para corrigir esse problema é um dever de cidadania. Tenho esperança de um mundo melhor”, finaliza.

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