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Artigo
Os Jogos Olímpicos e o esporte como direito de todos

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Desafios históricos devem ser superados para que a atividade esportiva contribua com a transformação da sociedade

“O País carece de uma séria e profunda discussão a respeito do que deseja para o seu futuro esportivo”

Daniel Marangon Duffles Teixeira
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Os Jogos Olímpicos e Paralímpicos do Rio de Janeiro de 2016 podem ser considerados uma síntese da história do esporte contemporâneo, em vários aspectos. Os jogos olímpicos modernos extrapolaram a esfera esportiva já há algum tempo. Há um consenso de que essa transformação começou nos jogos de 1936, em Berlim, quando o governo alemão percebeu o potencial midiático do esporte e utilizou o evento para fazer propaganda ideológica do nazismo e amedrontar os outros países. Coisa semelhante ocorreu durante a Guerra Fria quando os Estados Unidos e a União Soviética travavam no campo esportivo a batalha pela hegemonia geopolítica.

A discussão sobre a pertinência do uso de recursos públicos para a realização dos jogos teve início em 1976, em Montreal, cidade que levou 30 anos para pagar o evento. Em Los Angeles, no ano de 1984, trouxe a ideia de que os jogos deveriam ser lucrativos e que seu financiamento deveria ser feito prioritariamente pela iniciativa privada. Com isso, as grandes empresas multinacionais passaram a ser patrocinadoras dos jogos. A entrada do capital privado mudou o esporte para sempre, pois enterrou o principal valor do esporte moderno semeado por Pierre de Coubertin: o amadorismo.

Em Barcelona, 1992, a reorganização urbanística da cidade-sede, com a revitalização das áreas degradadas, a melhoria dos transportes públicos e a ampliação do potencial turístico, transformou a cidade. Atenas, em 2004, trouxe outra questão importante. Para atender a ampliação do programa olímpico pela inclusão de diversos novos esportes, a cidade construiu vários equipamentos permanentes para modalidades que não eram e nem viriam a ser praticadas pela sua população. Com o fim do evento, a cidade havia contraído uma dívida enorme e construído vários espaços de competição que ficariam sem uso, abandonados.

Pequim, em 2008, jogou luz sobre uma questão urgente e fundamental. A despoluição da cidade olímpica foi o grande assunto na mídia durante a preparação para os jogos e mesmo ao longo de sua realização. O ar estava tão poluído que foi necessário proibir, no período de sua realização, o uso de automóveis e o funcionamento das fábricas para que houvesse condições para as competições e para que a transmissão pela televisão não ficasse comprometida. Com a população altamente desconfiada, Londres optou por não gastar com a construção de novos espaços para as competições, em 2012. A maior parte deles já existia na cidade, outros foram disponibilizados de maneira provisória e desmontados após as disputas. Em termos de legados, a maior parte das instalações ficou para a utilização das escolas e universidades.

O Rio de Janeiro agrega esses temas em uma única edição do evento, além de jogar luz sobre outras questões. O problema do uso de dinheiro público em um evento privado não foi solucionado. A mídia noticia o caos na saúde pública da cidade maravilhosa. A esperança depositada para a reconfiguração urbana e despoluição da capital fluminense se esvaiu. Apesar do enorme orçamento, a cidade continua sofrendo com seus enormes complexos de favelas, com a falta de saneamento básico, com a poluição que torna problemática a utilização da Baía de Guanabara e da Lagoa Rodrigo de Freitas para as modalidades aquáticas.

A tentativa de usar o evento como propaganda turística, ideológica e de reposicionamento geopolítico do país mostra que nem sempre a percepção do resto do mundo é positiva. Comitês olímpicos de vários países ameaçaram não enviar seus atletas pelos riscos à sua saúde causados pela poluição da água e pela incapacidade de o país controlar doenças transmitidas pelo Aedes aegypti. Nos meses que antecedem à sua realização, o país enche os noticiários internacionais com manchetes sobre epidemias, crise política e econômica.

O investimento no transporte público foi realizado e a população carioca vai transitar em uma cidade com mais opções de linhas de metrô, de ciclovias e de ônibus que transitam por vias exclusivas. No entanto, a estratégia de ocupação dos complexos de favelas por unidades da polícia se desgastou e não parece ter conseguido grandes avanços para a redução da criminalidade no Rio de Janeiro. Entretanto, como se trata de uma cidade acostumada a grandes eventos e aglomerações, a violência do cotidiano não parece ameaçar o sucesso das disputas. É necessário, porém, que se registre a polêmica em torno das desapropriações para as obras olímpicas que afetaram milhares de pessoas, especialmente as mais pobres.

Do ponto de vista esportivo, perdemos a chance de inovar ao propor uma disputa única que comportasse as modalidades olímpicas e paralímpicas. Os para-atletas continuarão a sua participação segregada. No entanto, as instalações esportivas foram construídas com antecedência e com a qualidade desejada, observando também a necessidade de flexibilização da sua destinação com o encerramento dos jogos e a realização de algumas modalidades em equipamentos não permanentes. Assim, a expectativa é pela emoção nos campos, quadras, piscinas e no mar. O esforço realizado por mais de uma década para conquistar o direito de sediar o evento e os recursos reservados à melhoria das condições de treinamento e competição permitirão uma performance acima da média para os atletas brasileiros.

Todavia, há o risco de as medalhas esconderem uma questão. Como nação, ainda não conseguimos entender o esporte como direito de todos, conforme explicitado na Constituição Federal, na Lei Pelé, nos Estatutos da Criança e do Adolescente, do Idoso e da Pessoa com Deficiência, entre outros textos legais. A alegria de sediar o maior evento esportivo do planeta não será suficiente para garantir a redução do sedentarismo, a oferta de espaços adequados para a prática de lazer, ou mesmo para a aprendizagem, treinamento e competição das modalidades olímpicas. O País carece de uma séria e profunda discussão a respeito do que deseja para o seu futuro esportivo.

É necessário superar desafios históricos para que o esporte contribua de fato com a transformação de nossa sociedade, pois as medalhas sozinhas podem fazer muito pouco. Precisamos repensar o papel das escolas e dos clubes na formação de praticantes, discutir a questão da participação feminina e das pessoas com deficiência. Garantir que adultos e idosos também possam praticar. O dilema que enfrentamos é o seguinte: queremos ser um país que pratica esporte e que se apropria dos benefícios que ele oferece ou queremos ser um país que apenas usufrui da emocionante experiência midiática, celebrando os poucos heróis esportivos que temos? O que queremos para o nosso futuro: praticar ou assistir?

Texto
Daniel Marangon Duffles Teixeira
Em ano de olimpíadas, sediadas no Rio de Janeiro, o professor Daniel Marangon Duffles, chefe do Departamento de Educação Física e coordenador do curso, aborda a história desses jogos e o conjunto de desafios apresentados à cidade maravilhosa em decorrência da organização do evento. Questionamentos em relação ao uso de dinheiro público em evento privado, caos na saúde pública, poluição na Lagoa Rodrigo de Freitas e Baía de Guanabara — onde serão realizadas as provas aquáticas —, violência nas ruas e diversas outras questões são analisadas pelo professor.
Ilustração
Carlos Fonseca
Foto
Marcos Figueiredo
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