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Ciências Sociais De novo na prisão

Ulisses Henrique, de 34 anos, recuperando na Apac Santa Luzia e presidente do Conselho Sinceridade e Solidariedade (CSS)

Estudo propõe metodologia para todo o Brasil e calcula que a taxa de reincidência criminal em Minas Gerais é de 51,4%, abaixo do que se supunha

"O sistema prisional reinsere menos do que se deveria, mas ao mesmo tempo não está falido como se diz no discurso do debate público"

Professor Luis Flávio Sapori

Quantos indivíduos no Brasil, ao sair da prisão, seja depois que cumpriram a pena integral ou estejam em liberdade condicional, voltam a cometer novo ato criminoso? Apesar de a resposta sobre reincidência criminal ser importante para se saber em que medida o sistema prisional está conseguindo interromper a carreira criminal e se está ressocializando o indivíduo, não há no país uma metodologia unificada para os escassos dados disponíveis, já que nenhum Estado calcula essa taxa. Um novo cálculo de reincidência criminal é proposto por metodologia desenvolvida em estudo recentemente publicado pelo professor Luis Flávio Sapori, coordenador do Centro de Estudos e Pesquisa em Segurança Pública (Cepesp), da PUC Minas, com os doutorandos em Ciências Sociais da Universidade Roberta Fernandes Santos e Lucas Pereira Wan Der Maas.

Durante um ano e meio, os pesquisadores acompanharam os dados individuais dos egressos, de 2008 a 2013, do sistema prisional em Minas Gerais, e em que medida eles voltaram a ter algum tipo de indiciamento de investigação criminal na Polícia Civil nesse período. Chegaram à conclusão de que a taxa de reincidência criminal em Minas Gerais é de 51,4%. O percentual significa que pouco mais da metade dos indivíduos que cumpriram pena de prisão no Estado voltaram a cometer outros crimes em até cinco anos. “Isso demonstra que é um patamar elevado, comparativamente aos estudos internacionais que estão em 40% de reincidência. Mas a taxa de 51,4% é um patamar de reincidência abaixo do que supõem juristas, autoridades e meios de comunicação, que calculam um índice de 80% a 90%”, observa o professor Luis Flávio Sapori, ex-secretário adjunto de Estado de Defesa Social de Minas Gerais. O professor também enfatiza que o sistema prisional reinsere menos do que se deveria, mas ao mesmo tempo não está falido como se diz no discurso do debate público. “O sistema prisional pode ser melhor administrado. Se se conseguir fazer isso, pode-se diminuir essa taxa de reincidência”.

De 12 até os 18 anos, Devid Avelino dos Santos, atualmente com 28, cometia pequenos furtos, tendo sido apreendido cerca de dez vezes no total. Fugiu de centro de internação provisória e, 30 dias após ter completado a maioridade, cometeu latrocínio (roubo seguido de morte) e foi preso. Foi condenado por esse latrocínio e um assalto, totalizando 25 anos e 5 meses de pena. Já cumpriu nove anos no regime fechado. “Hoje entendo que tudo faz parte de um conjunto, a maior parcela de culpa é minha. Desestruturação familiar e condição financeira não eram motivos para cometer crimes”, reflete Devid, que residia em Juatuba, na região metropolitana. Foragido durante cinco meses, diz que não pensava em abandonar o crime. “Tinha a ilusão de que eu poderia enriquecer no crime”, possibilidade que se fortaleceu, em presídio em Juatuba, em contato com outros presos que conseguiram algum bem material com o crime, conta. Passou por outros cinco presídios, e aonde chegava tentava fugir.

“A pesquisa revela que a reincidência criminal é muito afetada pela trajetória do indivíduo no crime. Quanto mais nele está inserido, quanto mais ele constitui uma carreira criminal, ou seja, aquele indivíduo que fez do crime um meio de vida, maior é a probabilidade de esse indivíduo continuar os cometendo mesmo depois de cumprir a pena de prisão”, reforça o professor Sapori.

De acordo com o artigo 63 do Código Penal, “verifica-se a reincidência quando o agente comete novo crime, depois de transitar em julgado a sentença que, no país ou no estrangeiro, o tenha condenado por crime anterior”. Com essa definição, se chega a índices muito baixos de reincidência, considera o professor Sapori. O artigo, intitulado Fatores Sociais Determinantes da Reincidência Criminal no Brasil, foi publicado no volume 32 (2017) da renomada Revista Brasileira de Ciências Sociais.

Outros propósitos do estudo foram analisar se o perfil dos presos reincidentes é diferente dos não reincidentes e demonstrar os possíveis fatores individuais explicativos da reincidência, como atributos sociodemográficos e histórico criminal (veja algumas conclusões no quadro abaixo).

Outro estudo, pioneiro, que deverá ser publicado no final do primeiro semestre de 2018, pelo professor Luis Flávio Sapori, analisará a reincidência dos adolescentes infratores em Belo Horizonte, a pedido do Centro Integrado de Atendimento ao Adolescente Infrator da capital.

 

 

REINCIDÊNCIA CRIMINAL EM MG

As principais conclusões do estudo do professor Luis Flávio Sapori sobre reincidência criminal em Minas Gerais:

  • A pesquisa confirmou que os homens têm probabilidade de reincidir 314% a mais do que as mulheres, ou seja, a questão de gênero é muito importante para explicar a carreira criminosa de indivíduos. Os homens tendem a abandonar menos o crime ou tendem a ficar mais intensivamente no crime depois da prisão. A questão do gênero é decisiva.
  • A idade também interfere na probabilidade com que o indivíduo sai da prisão depois que cumpre a pena e afeta também a probabilidade de reincidência. Quanto mais jovem ele sai da prisão depois de cumprir a pena, maior é a probabilidade de ele voltar a cometer crimes. Esse dado confirma como os jovens tendem a persistir mais no crime do que as faixas etárias mais adiante.
  • O perfil criminológico dos indivíduos. Dependendo do tipo de crime que o indivíduo cumpriu pena, há maior probabilidade de ele voltar a reincidir. A pesquisa revelou que os crimes contra o patrimônio são aqueles que o indivíduo tem a maior probabilidade de voltar a cometer depois que saiu da prisão, principalmente furtos. O estudo não confirmou que a reincidência de traficantes ou dos criminosos do tráfico de drogas tendem a reincidir muito. A pesquisa apenas confirmou que é o roubo e principalmente o furto. Quem cumpriu pena por furto tende a cometer outros furtos mesmo depois de sair da prisão.
  • O crime contra o patrimônio leva o indivíduo a uma carreira criminosa, a fazer do crime um meio de vida, mais do que o tráfico de drogas. A pesquisa revela que o fato de o indivíduo cumprir pena por tráfico não significa que a probabilidade dele de reincidência seja grande. Na verdade, o que aumenta a probabilidade de reincidência é o crime contra o patrimônio (furto e roubo). Significa que é comum que pessoas que cumpriram pena por tráfico abandonarem o crime depois do cumprimento. O tráfico não fixa o indivíduo no crime, por incrível que pareça, nem homens e mulheres. O crime contra o patrimônio tende a fixar.
  • A pesquisa não identificou relevância na escolaridade. O fato de indivíduos terem maior ou menor escolaridade ao sair da prisão não afeta a probabilidade de reincidência.
  • O estudo revelou que quanto maior o número de registros do indivíduo na polícia, antes do cumprimento da pena, maior é a chance de reincidência, ou seja, a chance de reincidência aumenta em 41% a cada registro que ele tinha na polícia antes do cumprimento da pena. Isso reforça novamente o argumento da carreira criminosa. Se o indivíduo tem muitas passagens pela polícia antes do cumprimento da pena dele, significa que ele já tinha uma vida criminosa antes, então ele não é um criminoso que está iniciando. Significa que ele já tinha uma vida anterior. Quanto mais inserido no crime ele estava antes do cumprimento da pena, maior a probabilidade de reincidência.
  • A idade média dos reincidentes é de 22,8 anos. A idade média dos não reincidentes, do primeiro registro na polícia antes do cumprimento da pena, é de 25,7 anos, reforçando aquele argumento dos reincidentes.

Apac’s: Proteção e Assistência ao Condenado

O estudo da PUC Minas sobre reincidência criminal abordou os egressos do sistema prisional convencional em Minas Gerais, dos anos 2008 a 2013. O professor Sapori defende a incorporação da metodologia desenvolvida no estudo pelas secretarias de segurança pública dos Estados e também pelas Associações de Proteção e Assistência ao Condenado, as Apac’s, visando o rigor científico dos dados.

De acordo com o desembargador José Antônio Braga, do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) e coordenador-executivo do Programa Novos Rumos na Condenação Penal, os dados de reincidência criminal variam em cada unidade da Apac em Minas Gerais. Mas, de maneira geral, o percentual de reincidência dos recuperandos do sexo masculino varia de 10% a 25%, e do sexo feminino não ultrapassa 2%. De acordo com ele, quando na unidade da Apac há um conselho gestor proativo, com atuação intensa de voluntários para assistência e visita aos recuperandos também fora dela (como é no caso de recuperandos que cumprem o regime semiaberto), a reincidência tende a ser muito menor. “Durante o período da suspensão condicional da pena é muito importante que a Apac acompanhe a vida do indivíduo na diversão, na família”, pontua o desembargador. Ele cita que a Apac de Nova Lima, na região metropolitana, é a que sustenta índices de reincidência mais baixos, em torno de 12%; a de Santa Luzia, também na RMBH, de 15% a 20%; e a de Itaúna, no Centro-Oeste do Estado, 15%. “Se a metodologia da Apac for bem aplicada desde o regime fechado, a possibilidade de reincidência é bem menor. Já se houver alguma falha nesse caminho, a reincidência tende a crescer”, observa.

Na Apac de Santa Luzia, por exemplo, voluntários auxiliam na revista dos familiares e na produção de refeições, ou mesmo oferecendo curso gratuito de pintura, de cabeleireiro ou de fotografia. “Não acreditava que voluntários vinham à Apac doarem seu dia para ver outras pessoas que cometeram crimes. Nos sentimos honrados, é de grande valia”, afirma Ulisses Henrique, de 34 anos, recuperando na Apac Santa Luzia e presidente do Conselho Sinceridade e Solidariedade (CSS), gerido pelos próprios recuperandos, com o papel de ligação entre eles e a administração da entidade. São, atualmente na Apac Santa Luzia, 90 recuperandos no regime fechado, 52 no semiaberto e 21 em trabalho externo.

PUC Minas na Apac de Santa Luzia

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Devid Avelino dos Santos, de 28 anos, que cumpre pena de 25 anos, está há nove no regime fechado

Devid dos Santos, retratado no início desta reportagem, está há dois anos na Apac de Santa Luzia e deve ter progressão para o regime semiaberto em 2022. Desde quando estava no sistema prisional convencional, mesmo pensando o tempo todo em fugir, tinha atração pelo estudo, lia e escrevia com frequência. Tem dois livros de sua autoria, um sobre corpo, alma e espírito e outro no qual defende o criacionismo. Está escrevendo outro sobre os efeitos do sistema carcerário. Já participou de oficinas de leitura oferecidas na Apac de Santa Luzia pelo Curso de Letras da PUC Minas, por meio do programa Remição pela Leitura, no qual comissão composta por professores do Departamento de Letras da Universidade faz análise de resenhas literárias elaboradas pelos recuperandos em troca de diminuição na duração da pena.

A PUC Minas atua na Apac de Santa Luzia desde sua fundação, em 2007, com iniciativas desenvolvidas pelos cursos, por meio de atividades de extensão. Atualmente, dentro do programa (A)penas Humanos: ações interdisciplinares no âmbito da Apac, nove professores e em torno de 60 estudantes extensionistas, de seis cursos de graduação da Universidade, atuam junto aos recuperandos, com atividades semanais e quinzenais, como explica a coordenadora do programa junto à Pró- Reitoria de Extensão (Proex) da Universidade, professora Fernanda Simplício.

Devid participa do plantão psicológico oferecido pelo Curso de Psicologia, com atendimentos individuais e rodas de conversa, estas com a participação também do Curso de Fisioterapia. Já participou de curso de primeiros socorros promovido pelo Curso de Enfermagem, que desenvolve ainda atividades relacionadas à saúde, de prevenção de doenças sexualmente transmissíveis (DSTs) e aferição de pressão, por exemplo. Na assistência jurídica oferecida pela Universidade, Devid faz levantamento de quais recuperandos gostariam de ser ali atendidos, uma espécie de pré-triagem. Com ensino médio a completar neste semestre, pretende um dia cursar Direito. A PUC Minas desenvolve ainda atividades com o Curso de Fisioterapia, oficinas voltadas para a saúde física dos recuperandos e atendimentos individuais; pelo de Ciências Biológicas, com oficinas coletivas com temáticas variadas escolhidas pelos próprios recuperandos, por exemplo, doenças, animais peçonhentos e vida humana; e o de Direito, com atendimento jurídico nas questões criminais dos recuperandos.

“Tenho que pagar pelos meus crimes, não é o caso de a sociedade ficar sentindo pena”, diz o recuperando, que chegou à Apac com algema e acorrentado, mas ficou muito surpreso quando disseram que não mais as usaria, tendo sido recebido com oração e a delegação da função de encarregado jurídico no CSS.

Texto
Leandro Felicíssimo
Fotos
Raphael Calixto
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