revista puc minas

Ciências Sociais Gestão coletiva

foto-1

Ex-funcionários se tornam sócios, como solução para a manutenção do emprego e geração de renda

“Os que participaram desse processo estão muito orgulhosos de terem conseguido formar empresas deles, de propriedade e gestão coletiva”

Ana Beatriz Trindade de Melo
foto-2
João Eustáquio, da retífica em Belo Horizonte, com Ana Beatriz, autora da tese

O desemprego é uma realidade da qual muitos trabalhadores já experimentaram em algum momento da vida. Mas e se a empresa faliu, cada funcionário aceita máquinas da que fechou e, assim, leva adiante, junto com os colegas, uma nova empresa? A autogestão, na qual os ex-funcionários se tornam os próprios gestores, foi uma saída encontrada por trabalhadores de algumas empresas de retífica de motores, na região metropolitana de Belo Horizonte, oriundas de empresas falidas, para a manutenção do emprego e para a geração de renda. A constatação, a partir da análise de algumas empresas do ramo em Contagem e em Belo Horizonte, criadas após processo de falência das empresas originais, no final da década de 1990 e anos 2000, é fruto da tese de doutorado Nem empregados nem desempregados: estudo sobre a autogestão em empresas recuperadas por trabalhadores da Região Metropolitana de Belo Horizonte. O trabalho foi defendido recentemente no Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais por Ana Beatriz Trindade de Melo, sob orientação da professora Cristina Almeida Cunha Filgueiras.

“Os que participaram desse processo estão muito orgulhosos de terem conseguido formar empresas de propriedade e gestão coletivas”, diz a autora. Tiveram, assim, ganhos subjetivos, reais, como o conhecimento, o controle e a liberdade para intervir no processo produtivo, com decisões coletivas em todos os procedimentos. “Mas, na prática, eles reproduzem valores, hierarquias e divisão de tarefas da empresa que fechou, sendo um obstáculo à construção do ganho político”, constata a pesquisadora, em referência ao conceito de autogestão, definida por autores da área de economia solidária, como Paul Singer, como uma possibilidade para a transformação democrática das relações de trabalho e da sociedade em geral, a partir da propriedade coletiva dos meios de produção e gestão realizada por igualdade de direitos e deveres, uma transição da relação vertical entre capital e trabalho para um relacionamento horizontal e igualitário entre os trabalhadores. Ana Beatriz observa que autores do tema cooperativismo dizem que, a partir da autogestão, a empresa estaria blindada em relação ao meio social, político e econômico que as envolve, o que não se constatou no estudo. “Vale questionar até que ponto seria possível construir valores e práticas de solidariedade, cooperação e igualdade em uma sociedade essencialmente desigual e não solidária como a nossa”, diz. Os trabalhadores das empresas analisadas também reclamaram da falta de apoio do Estado que, segundo eles, “só sabe fiscalizar e criar taxas e impostos”, da ausência de uma legislação específica que contemple as demandas e fortaleça econômica e socialmente essas novas empresas e da falta de reconhecimento da sociedade, já que é uma forma de trabalho pouco divulgada, faltando valorização do trabalhador sem carteira assinada, analisa a autora. Essa “crise identitária” é mais um obstáculo ao ganho político, de acordo com Ana Beatriz, que está relacionada à frase: “Quem somos nós: autônomos, empregados ou patrões?”, questionou a autora na tese.

Os anos 1990, período em que as empresas foram criadas, foram marcados no Brasil, pela crise do emprego associada à fragmentação da classe trabalhadora e à perda de direitos fundamentais. A classe trabalhadora, aponta Ana Beatriz, encontrava-se em uma posição defensiva segundo a qual a manutenção do emprego e a geração de renda despontavam como motivações centrais. Nos casos estudados, o medo do desemprego foi apontado como principal razão para a formação das iniciativas. “Esse quadro marca, na origem das empresas, um caráter de precarização e não de engajamento político. O resultado é o isolamento dessas iniciativas, além de seu enfraquecimento e desaparecimento, em particular no que diz respeito à última década, período em que se registrou um aumento significativo do número de postos formais de trabalho no Brasil”, analisa a autora.

O objetivo principal do estudo foi analisar a realidade de trabalho nessas novas empresas, com ênfase nas percepções, experiências dos trabalhadores sobre a prática da autogestão e possível vinculação dessa prática com o significado político. “Os trabalhadores entrevistados, em sua maioria, não pensaram em transformação política e social [com a autogestão]. Nesse contexto, a adesão voluntária aos empreendimentos estudados ficou bastante comprometida. As retíficas significaram para os trabalhadores uma alternativa para geração de trabalho e renda na medida em que se sentiam excluídos do mercado por questões como elevada faixa etária e baixa escolaridade.”

Liberdade para trabalhar

Em uma das retíficas estudadas, localizada em Belo Horizonte, atualmente são dez sócios e dois funcionários. Quando da criação dessa nova empresa, eram 20 sócios, sendo que os outros dez foram para outras retíficas. Um dos sócios majoritários, João Eustáquio Cardoso, explica que a microempresa fora dividida em cotas, e os três sócios majoritários gerenciam todos os outros. Eles têm retirada igual entre todos os sócios. “Na época da falência, a empresa da qual éramos empregados não tinha condições de pagar nada para nós, então fomos aconselhados pelo sindicato a continuar a tocá-la”, relembra. “Foi um bom negócio, temos mais liberdade para trabalhar.” João Eustáquio diz que a gerência é trocada de dois em dois anos, por voto da maioria, e diz que foi eleito “pela confiança”. Ele está no posto há quase esse período, tendo passado por várias áreas da empresa. “Sinto confiança entre todos nós, a gente deixa aqui tudo às claras, o caixa é aberto e fechado todo dia para qualquer sócio que queira ver”, orgulha-se.

João diz que os sócios fizeram cursos pelo Sebrae, “o que fez muita diferença para o próprio conhecimento”. Da falência à nova empresa, ele diz que houve um crescimento de 30% no faturamento. Ele credita o desempenho ao jeito de administrar, com bom tratamento ao cliente, com economia de custos e qualidade no serviço. “A empresa está com as contas totalmente sanadas, não devendo nada, com impostos em dia”, garante.

Atualmente, cada um dos sócios tem retirada de R$4 mil, após a empresa pagar todas as contas, diz João. Ele afirma ainda que a empresa recebeu muito apoio do sindicato e do Sebrae.

Trabalho e desigualdades

A orientadora da tese, professora Cristina Filgueiras, ressalta a possibilidade de estudos da área de relações do trabalho, como essa tese de doutorado de Ana Beatriz, poderem ser produzidos dentro da linha de pesquisa Metrópoles, Trabalho e Desigualdades, uma das oferecidas pelo Programa de Pós-graduação stricto sensu em Ciências Sociais. A professora destaca a relevância do estudo defendido por Ana Beatriz. Com relação às empresas elencadas na tese, a professora Cristina Filgueiras disse que a busca pela sobrevivência desses trabalhadores difere da realidade da autogestão em outros países. Com a autogestão, define ela, há a valorização de relações de trabalho horizontalizadas, do saber individual e coletivo desses gestores.

“As empresas analisadas significam formas importantes de inserção social, de resistência e de ação frente ao desemprego aberto pela atual realidade do mercado de trabalho, apontando para a constituição de novas relações sociais que contribuem para reconstrução de identidades coletivas e recuperação da dignidade”, discorre a autora do estudo, Ana Beatriz.

foto-3
Antônio Carlos, com Robson: retirada por sócio pode chegar a R$ 6 mil

Dificuldades de honrar compromissos

Já na retífica de motores localizada em Contagem, a situação financeira é bem diferente. Um dos gestores é Antônio Carlos Leandro, de 57 anos. Eram 22 cooperados, ex-funcionários, que assumiram a gestão e criaram essa nova empresa, mas faltou apoio governamental, o que poderia torná-la mais fortalecida, lamenta. Nesses anos, cerca de dez sócios largaram a empresa para se tornarem empregados em outras. Atualmente, relata ele, a organização não conta com qualquer parceria do governo ou de sindicatos, e o faturamento está muito abaixo da média e com dificuldades de honrar compromissos, com alguns sócios tendo necessidade de terem emprego com carteira de trabalho. A empresa é optante do regime especial de tributação Simples, o que, se houver atraso no pagamento de impostos, perde benefícios, lembra Antônio. “É preferível eu ter um salário de R$ 2 mil, R$3 mil na carteira, já que aqui não ganho R$1mil. Mas pela liberdade, por acreditar, amanhã poderá melhorar o volume de serviço, podendo chegar a ganhar R$6 mil”, aposta. Apesar de as máquinas da empresa serem importadas, caras e raras, elas não servem como quitação de dívidas bancárias, explica. Há cinco anos, por exemplo, a empresa faturava, em média, R$ 70 mil por mês. Antônio Carlos diz que, mesmo havendo hierarquia entre os sócios cooperados, ele é o sócio “da linha de frente”. Há cinco anos eleito por meio de votação entre os colegas, era quem possuía o maior valor entre as máquinas arrendadas. Com relação às questões financeiras, a decisão da maioria é respeitada, garante. Mas Antônio admite que o número de reuniões para decisões colegiadas entre os sócios cooperados diminuiu muito nos últimos anos.

No que diz respeito à satisfação em serem gestores, Antônio Carlos diz que, como administradores, a preocupação dobra, não há mais um salário vinculado à carteira, o que há é retirada, igual para todos os sócios, mas permanecendo a atenção com a qualidade e a conquista dos clientes. “Temos que pagar impostos, diferentemente de quando se é empregado, ‘apenas preocupado em produzir’”, diz. Apesar das dívidas, ele garante que a retífica é rentável. “Vale a pena ser patrão. É bom ter liberdade, ter compromisso.” A criação da empresa, de acordo com ele, não foi por falta de opção no mercado de trabalho, a tentativa era “ser alguém”. “Minha intenção é a retífica se tornar uma grande empresa”, diz.

Texto
Leandro Felicíssimo
Fotos
Marcos Figueiredo
Os sócios de retífica localizada em Contagem dizem que vale a pena ser patrões, mesmo com dificuldades financeiras
Compartilhe
Fale Conosco
+ temas relacionados