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Comunicação Havia um cinema, havia uma praça…

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Trabalho apresenta cartografia dos antigos cines de rua da capital mineira

"Nessa época, o cinema era visto como uma forma de sociabilidade, os prédios eram muito luxuosos, as paredes de veludo, as pessoas vestiam as melhores roupas para frequentá-lo”

Maria Fernanda Chicre

“O primeiro filme ninguém esquece. Foi A Noviça Rebelde. Havia um cinema, havia uma praça. Havia domingos ensolarados e uma fonte de águas dançantes depois dos filmes. Havia tapetes vermelhos e corrimões dourados. Havia o Cine Candelária e a vitalizada Praça Raul Soares. Era um programa de domingo.” O depoimento, assinado por Júlio Toledo, foi retirado do site Cinema de Rua BH e revela uma época em que a experiência de ir ao cinema não se limitava apenas a assistir a um filme. Mais que isso, representava um importante lugar de convívio social, lazer e troca cultural.

Criado pelas egressas do Curso de Publicidade e Propaganda, do campus Coração Eucarístico, Luiza Therezo, Maria Fernanda Chicre e Natália Meira, o site consiste em uma cartografia dos cinemas de rua da capital mineira e registro das memórias afetivas dos usuários. O projeto faz parte do trabalho de conclusão de curso das alunas, orientado pelo professor José Márcio Barros, e mostra a trajetória dos cinemas de rua e a migração das salas para os shopping. Por meio de referências bibliográficas, as alunas descobriram a existência de mais de cem salas de cinema de rua na história de Belo Horizonte e já conseguiram encontrar e reunir informações de 43 delas, disponibilizadas no site.

Importância histórica

Escolhida para substituir a então capital do estado – Ouro Preto -, Belo Horizonte foi inaugurada em 1897 como forma de ruptura política, ideológica e estética com o passado colonial, como observa José Márcio. “A ideia era construir uma nova capital no século 19, mas que olhasse para o século 20, época em que se conjugava de uma maneira forte as relações entre ciência, arte e cultura. E o cinema reunia essas três coisas”, lembra, reafirmando a importância dos cinemas de rua para a história da cidade.

Como parte desse modelo inicial e ideal da nova capital que estava sendo construída, antes mesmo da abertura das primeiras salas, como os cinemas Bahia, Colosso, Comércio, Familiar, Parque Cinema e Pavilhão, por volta dos anos de 1910, várias projeções de filmes aconteciam em bares, cafés e residências. Porém, foi entre 1930 e 1940 que os cinemas tornaram-se polos de lazer na cidade, segundo as pesquisadoras. “Nessa época, o cinema era visto como uma forma de sociabilidade, os prédios eram muito luxuosos, as paredes de veludo, as pessoas vestiam as melhores roupas para frequentá-lo. Outra questão é a ocupação do espaço público, pois as pessoas ficavam nas ruas esperando a hora do filme, o que movimentava muito a vida noturna”, comenta Maria Fernanda.

O Cine Brasil, localizado na Praça Sete, foi um dos mais importantes da cidade. Quando inaugurado, em 1930, se tornara o maior cinema do país e o mais alto prédio da capital. “Ele era grandioso, bonito e confortável. Durante muito tempo, acho que até os anos 1970, foi o cinema com maior índice de público do Brasil. Além disso, a capacidade dos governos de preservá-lo como espaço cultural até hoje reafirma seu valor para a cidade”, comenta José Márcio. Após 14 anos fechado e com a fachada original mantida, ele foi revitalizado e reinaugurado em 2013 pela iniciativa privada.

Outro relevante cinema na história de Belo Horizonte, de acordo com a pesquisa das alunas, foi o Cine Metrópole, na rua da Bahia, inaugurado em 1942, que, juntamente com o Cine Brasil, estreava exclusivamente filmes de ponta das principais produtoras norte-americanas. Apesar de a maioria das salas se concentrarem na região central de Belo Horizonte, algumas se localizavam em bairros, como o Cine Odeon, na Floresta, e o Cine Pathé, inaugurado em 1948, na Savassi, considerado o principal cinema de arte da época.

Salas fechadas na década de 1980

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O professor José Márcio, com as ex-alunas Luiza, Maria Fernanda e Natália, no Cine Belas Artes, um dos poucos cinemas de rua de Belo Horizonte

Com a chegada da televisão no Brasil, a partir da década de 1950, houve queda de público das salas de cinema, segundo relato das alunas. Embora o fechamento das salas tenha ocorrido aos poucos, Luiza explica que foi em 1980 que a maioria delas foi fechada: “Muitas já estavam em decadência nos anos 1970 e 1980, pois não conseguiam acompanhar a evolução tecnológica, já não apresentavam uma grande quantidade de lançamentos, as poltronas estavam velhas e os aparelhos de exibição bem deteriorados”.

Para Luiza, a chegada dos shopping na década de 1980 acabou sendo uma alternativa para modernizar o cinema e o alto índice de violência, que passou a marcar o início da década até os dias de hoje, tornava mais seguro frequentar esses espaços, que já contavam com estacionamento e praça de alimentação.

No lugar da maioria dessas salas, foram construídos estacionamentos, igrejas e lojas comerciais, e os movimentos existentes contra o fechamento de alguns cinemas perderam para a especulação imobiliária, de acordo com o professor José Márcio. Entretanto, Natália observa que não se pode responsabilizar os shopping pela decadência dos cinemas de rua, pois eles já estavam em declínio. “A migração para o shopping foi importante para preservar o hábito de se frequentar o cinema, pois com o fechamento das salas de rua esse costume poderia acabar.”

Mediação do espectador com a obra de arte

“O Cine Brasil era grandioso, bonito e confortável. Durante muito tempo, acho que até os anos 1970, foi o cinema com maior índice de público do Brasil”

Professor José Márcio Barros
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Apesar de considerar válida qualquer forma de se assistir a um filme, o professor acredita que assisti-lo em shopping trouxe várias mudanças, principalmente na mediação do espectador com a obra de arte. “O modo de assistir, que as salas de rua representam, permite que essa mediação seja feita de uma maneira mais direta, ou seja, não existem apelos gastronômicos ou de compras. É o seu desejo de se relacionar com aquela obra que move você, no máximo mediado por um pacotinho de pipoca”, explica.

As relações socioculturais também foram alteradas, pois, segundo José Márcio, os cinemas de rua expressavam uma maneira de manter o espaço público como lugar de encontro, sempre com a oportunidade de conversar e trocar ideias sobre o que o filme havia significado para quem o assistia. O cinema também era mais acessível. “Hoje, uma ida ao cinema é um acontecimento que precisa ser pensado em quanto se vai gastar com estacionamento, pipoca, bebida e o próprio filme. Imagina uma família com três filhos indo juntos ao cinema! Esse deixou de ser um programa que fazia parte do cotidiano da vida das pessoas e passou a ser um evento para o qual você tem que se programar financeiramente”, reflete o professor.

Para Luiza, outra mudança relevante aconteceu com a chegada das redes de cinemas dos shopping, pois a padronização não oferece experiências diferentes, e os filmes exibidos são praticamente os mesmos, não abrindo espaço para cineastas independentes. Atualmente, uma das poucas salas que têm essa proposta é o Cine Belas Artes, em Lourdes, o único tipicamente de rua da capital, e os cines-clubes Cine Humberto Mauro, no Palácio das Artes, e Cine 104, na praça Ruy Barbosa, rua Guaicurus, que estimulam reflexões sobre o cinema e dão acesso a obras que não têm apelo mercadológico.

Revisitar e compartilhar experiências

Manter essas memórias e lembranças em um único lugar é a proposta do site das alunas. A intenção é criar um acervo em que as pessoas possam revisitar experiências e também compartilhá-las. “Pelos depoimentos, vemos histórias de pessoas que frequentaram os cinemas desde crianças, passaram a adolescência frequentando-os, ficaram mais velhos e levaram os filhos”, conta Maria Fernanda.

Para o orientador do projeto, o site foi uma forma de convergir um conjunto de pessoas, que preferem, segundo ele, outro modelo cultural de se relacionar com o cinema. “Pensamos em um produto final que pudesse agregar e fazer convergir pessoas, não por um sentimento saudosista, mas por um que mantém vivo o interesse pelo cinema, por aqueles que sabem que o modo de assisti-lo interfere na obra fílmica”, afirma.

Sentimento compartilhado por Noua Assumpção, em depoimento deixado no site: “O que dá saudade mesmo é o ruído do 35mm [bitola cinematográfica] na tela e o barulho do projetor da cabine. São tantas histórias e tantos filmes que só fazem sentido em um cinema de rua”.

Texto
Tereza Xavier
Fotos
1Arquivo Iepha
2Marcos Figueiredo
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