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Direitos Humanos Lição de humanismo

Em aula magna, o padre Júlio Lancellotti fala da luta para tornar as cidades espaços inclusivos

Aos 72 anos e mais de três décadas de sacerdócio, o padre Júlio Lancellotti é uma referência nacional na defesa dos direitos humanos e das minorias marginalizadas. Nos últimos anos, no entanto, o coordenador da Pastoral de Rua da Arquidiocese de São Paulo vem se destacando com sua presença forte e atuante junto à população que vive nas ruas da capital paulista. A partir do seu trabalho, o pedagogo, descendente de imigrantes italianos, vive esse cotidiano da cidade, esse espaço que ele mesmo define “como o lugar do contraste, do conflito, onde se explicita a desigualdade”.

Para falar dessa vivência, o padre Lancellotti foi o convidado de aula conjunta promovida, em abril, pela Faculdade de Comunicação e Artes (FCA), Instituto de Ciências Humanas (ICH) e Instituto de Ciências Sociais (ICS), por meio do canal PUC Minas Lives, no You Tube. Com o tema Como fazer da cidade uma casa comum: alternativas e caminhos para enfrentar a pobreza, o religioso deu uma verdadeira lição sobre como viver na prática o amor e a compaixão e compartilhou o seu trabalho e a sua luta pelos necessitados.

Reproduzimos, abaixo, os trechos mais representativos da sua reflexão. A aula pode ser também acessada, na íntegra, pelo canal PUC Minas Lives no YouTube, neste link.

“O amor é a desordem”

É uma grande responsabilidade estar com vocês, mas, com toda a simplicidade, partilhar um pouco da vida e dessa luta constante e dessa confusão contínua. Logo, quando foi falado da confusão, eu lembrei o que dizia o grande e querido teólogo José Comblin, que foi meu professor e grande amigo, que dizia que o amor é a desordem. E amar nesse sistema que nós vivemos é desordenar o nosso mundo.

Uma das questões que me chamam muita atenção é o livro As Lógicas da Cidade, que é de uma pessoa muito querida em Belo Horizonte, no Brasil e no mundo, o padre Libânio [João Batista Libânio]. As cidades são, e isso lembrava muito Dom Celso Queiroz, que foi secretário geral da CNBB e bispo auxiliar de Catanduva, São Paulo, a vitrine da modernidade. A cidade hoje é o lugar do contraste, do conflito, é onde se explicita a desigualdade, onde estão os grandes conflitos do modelo neoliberal, desse capitalismo que intrinsecamente é desumano e causa a desumanização da vida. A cidade é esse local do conflito, do grande desafio. A primeira coisa que nós temos que ter presente é que a luta pela humanização da cidade, para que a cidade seja uma casa comum, é uma luta histórica. Essa dimensão que nós perdemos: a dimensão da historicidade da luta. Muitas vezes nós lutamos achando que nossa intencionalidade basta. A luta não é feita de intencionalidades, ela é feita de historicidade. Nós conhecemos muito a história da teologia e conhecemos muito pouco a teologia da história. É preciso nos debruçarmos mais sobre essa reflexão da teologia da história, isto é, como Deus se faz presente na história e como a presença de Deus na história vai fazendo a busca da transformação. E essa transformação vai acontecendo no meio de desafios, conflitos, confusão, desordem, enfrentamento e, até, desobediência civil. Não podemos pensar que as mudanças e, principalmente, a mudança amorosa, que é feita por amor, vai acontecer em um passe de mágica. É uma luta difícil, ferrenha, uma luta que vai se dar na história. Cabe a nós, nesse momento escuro e difícil da história, carregar a luz para que ela não se apague.

 

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“A especulação imobiliária governa as cidades”

Marcou-me muito nesse tempo da pandemia a vida e a morte de Dom Pedro Casaldáliga. A vida e a morte dele são paradigmáticas dessa luta na história. Ele morreu durante a pandemia. Foi carregado e sepultado pelos indígenas, ele no caixão descalço, carregando os sinais dos pobres da América Latina e Central. Sepultado no cemitério dos esquecidos, junto dos pobres abandonados, na beira do rio Araguaia. E no momento em que se negou tudo aquilo pelo qual ele lutou, profetizou e poetizou, foi colocado em xeque.

Então, que mistério é esse de uma luta que não acaba, não se vence, não termina? De uma luta que é contínua e de resistência a cada momento, cada passo, de às vezes um alimento que temos que buscar de uma maneira ferrenha, de uma luta que é terrível. Porque na cidade o jogo de interesses está muito presente. A especulação imobiliária é o que governa os interesses econômicos. É o poder político, como o poderio econômico que determina o rumo que a sociedade toma. Veja agora, no caso das vacinas, a questão das patentes, da sobrevivência do nosso povo, do auxilio emergencial.

Nós temos que ter alguns sinais bem claros de como humanizar as cidades, buscando as luzes de esperança que não se apagaram. Para que essa esperança permaneça, temos que manter sempre o apoio e a luta constante na defesa dos direitos humanos. Isso é fundamental.

Temos que entender melhor, compreender melhor e perceber que lugar têm na nossa cidade os moradores de rua, os que estão nas prisões, os jovens privados de liberdade, as mulheres que estão prostituídas, as pessoas que estão nas periferias, nas comunidades, nas habitações coletivas, nos cortiços, nas grandes periferias da cidade. Os que são vítimas da violência policial, o genocídio da juventude negra, o racismo, o machismo, a xenofobia, a questão dos imigrantes e refugiados. Os descartados, como diz o Papa Francisco. A lógica do sistema neoliberal é o descarte. Então, que lugar eles têm na nossa Igreja? Que lugar eles têm na nossa Universidade? […] Os mais pobres têm que ter um lugar importante nas nossas universidades. Como a produção do conhecimento de todas as áreas do saber contemplam os mais pobres, os esquecidos?

Não podemos esquecer e nem excomungar o grupo LGBTQIA+. Eles são uma benção para mim porque eles me ensinam a ouvi-los, entendê-los, compreender as suas dores e sofrimentos. A dor que eles carregam no corpo e na vida. A dor da rejeição.

Hoje eu estava no café da manhã com os moradores de rua e eu sempre digo que eu não trabalho com moradores de rua, eu convivo com eles. Eles não são objeto do meu trabalho. Uma jornalista de um jornal norte-americano que me acompanhou pela manhã me disse que achava interessante eu ficar entre eles, com a troca de olhares, de palavras, de gestos. Porque eu estava dizendo a ela: quem pergunta para o morador de rua o que ele sente? Onde ele dormiu essa noite? Como ele está? O que se passa com ele? Ninguém quer saber. Todos se incomodam porque eles são mais numerosos na cidade, porque eles causam problemas. As políticas das prefeituras na maior parte das vezes são higienistas. Os condomínios também são higienistas. Muitas vezes quando me dizem que os moradores de rua são muito agitados eu digo: vai em reunião de condomínio, quando tem sorteio da vaga de garagem. Eu conheço muitos condôminos que vão parar na delegacia no final da reunião. Não é que o morador de rua é mais agitado, é que a vida dele é exposta.

“Temos que ter gestos concretos”

Eu acredito que nós temos que fazer um descenso. Descer para conviver. […] E tentar olhar a cidade e o mundo a partir dos olhos dos pobres. Saber que a cidade é o lugar da diversidade. Temos que lutar contra todo tipo de discriminação e de preconceito. Uma universidade tem que pensar, e todos nós em nossas comunidades, se a homofobia tem lugar nos nossos espaços. Nós temos que varrer a homofobia, a transfobia. Nós temos que acolher a vida de maneira incondicional. Nós não devemos buscar uma religião feita de moralismos e de condenações, mas uma religião e uma fé que sejam de acolhimento, de transformação e de humanização.

Há coisas na cidade que podemos mudar. Essas mudanças serão históricas, mas têm que ter critério. No momento é lutar pela vacinação em massa. Temos que pressionar e lutar pela proteção social, por uma renda básica. Por uma proteção social verdadeira, para que as pessoas possam ter um verdadeiro isolamento social. Como dizer para o morador de rua ‘fique em casa’. Que casa? Como dizer para eles lavarem as mãos? Com que água potável? […] Uma coisa simples que faz a cidade ser mais humana: garantir o acesso à água potável entre os moradores de rua, para os catadores, para aqueles que trabalham na rua, mesmo no momento emergencial como o que estamos vivendo.

Temos que ter gestos concretos. A nossa fé, a nossa esperança e a nossa caridade têm que ter concretude. Uma cidade que seja para todos tem que ter concretude. Temos que garantir às pessoas mais pobres acesso ao essencial: alimentação, higiene, acolhimento e a uma luta que seja feita com eles, e não para eles. Em Belo Horizonte, acredito que vocês conhecem a Pastoral de Rua e a irmã Cristina Bove. Ela tem um lastro de experiência no Brasil inteiro, em toda a luta da Pastoral Nacional de Rua, que tem como ponto fundamental a convivência. Formarmos comunidade com os pobres, os fracos e com os pequenos. Lutarmos com eles pelos direitos da vida, os direitos humanos. E construir com eles, e com todas as pessoas que são descartadas, um caminho. Pode parecer muito distante como vamos construir essa cidade para todos. Nós não vamos construir e acabar a construção, vamos continuar a construção que vieram de outros. A luta não é nossa, não começou conosco. Essa luta tem uma história. Gosto de lembrar os nossos heróis populares, como o Zumbi, Dandara, Antônio Conselheiro, como tantos mártires do nosso povo que lutam e que lutaram. Nós temos muitos exemplos de homens e de mulheres lutadores pela humanização da vida.

 

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“Feliz de estar do lado dos que não venceram”

Temos que ter metas e sinais. Garantimos em São Paulo que toda a população de rua e dos abrigos seja vacinada. Temos que lutar muito para garantir a vida, a sobrevivência, o espaço de encontro, a personalização dessas pessoas. Elas não podem virar um número. Que em nossas universidades tenha um espaço de reflexão, a partir do lugar social em que eles estão. Temos que garantir o acesso à água potável e sabermos que nós não lutamos para vencer, lutamos para sermos fiéis. E seremos muitas vezes derrotados. Gosto muito daquilo que diz o Darci Ribeiro: “Lutei tantas vezes e fracassei, mas estou muito feliz em não estar do lado dos que venceram”. Eu também estou muito feliz de estar do lado dos que não venceram. E acho que nós temos que ter uma opção muito clara na cidade: estar do lado dos pequenos e não dos grandes, dos fracos e não dos poderosos, dos que são pisados e não dos que pisam. Estar junto dos que são vítimas, como os nossos irmãos de Brumadinho, como todos os que são vítimas das barragens, todos os sem-terra, os quilombolas, as comunidades ancestrais, todos os grupos indígenas.

Eu sugiro a todos os nossos estudantes: há uma pedagogia libertadora em entender o oprimido, tão bem formulada pelo Paulo Freire. O neoliberalismo não é só um modelo econômico, ele é uma epistemologia. A meritocracia entrou na nossa maneira de pensar e de ver o mundo. Nós vivemos uma epistemologia neoliberal. Isso é muito difícil de superar se não for a partir de baixo para cima, a partir de tirar de dentro de nós a impressão que interiorizamos, e o opressor que interiorizamos. Gosto muito de uma citação de Simone de Beauvoir que diz que os opressores não teriam tanto poder se não tivessem tantos cúmplices entre os oprimidos. Ou, como diz o Paulo Freire, a cabeça do oprimido muitas vezes é a hospedaria do opressor.

Um dos livros que estão sendo lidos muito nesse momento é o Guerra Cultural e a Retórica do Ódio, do professor João Cesár de Castro Rocha. A retórica do ódio que tomou conta do Brasil. É interessante que ele faz um estudo etnográfico desse pensamento fundamentalista. É surpreendente que até mesmo dentro dos ambientes universitários nós tenhamos a presença da retórica do ódio, das fake news, da desqualificação do interlocutor.[…] Que são os ataques que nós sofremos, as fake news e as tantas outras formas que tentam desqualificar a luta pelos direitos humanos e a luta em defesa dos mais pobres.

“Compaixão é dimensão humana”

É muito importante que tenhamos uma visão teológica clara. Eu tenho repetido, e a alguns causa surpresa, que a misericórdia e a compaixão não são dimensões religiosas, são dimensões humanas. Porque os ateus e os agnósticos também são misericordiosos e compassivos. E muitas vezes aqueles que se dizem religiosos não são, e usam da religião para dominar e instrumentalizar o povo.

[…] Muitas vezes o pensamento cristão é deformado e utilizado para dizer que Deus está acima de tudo. Deus não está acima de tudo, Deus está no meio de nós. Nós, cristãos católicos, repetimos muitas vezes na liturgia: Ele está no meio de nós. No meio, não acima de nós.

Temos que ter uma reflexão teológica muito grande, uma abertura ao diálogo religioso e uma convivência com um grupo que cresce muito e que está comprometido também na humanização da cidade, que são os sem religião, que são os ateus. No café da manhã, com os moradores de rua, estamos sempre reunidos com pessoas de várias religiões. Hoje estava comigo um budista, ontem um sheik muçulmano e, algumas vezes, mãe de santo, babalorixá. Amanhã vou estar com o pastor Rica da Igreja Bola de Neve, que está sendo muito perseguido na área da Cracolândia. Nós temos que ter um diálogo religioso muito aberto e diálogo com os ateus, porque eles não estão privados da dimensão humana. Muitas vezes quem está privado da dimensão humana são aqueles que fazem do discurso religioso um dogmatismo para dominar as pessoas.

 

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Disciplina de luta

Como é um ambiente universitário, gostaria de indicar dois livros para todos os estudantes que estão nos acompanhando. Um deles nenhuma editora quis traduzir para o português: La Revolución de Jesús: el proyecto del Reino de Dios, de um teólogo jovem espanhol, Bernardo Pérez Andreo. Quando a gente fala da confusão eu procuro inspirar minha confusão na leitura desse jovem teólogo leigo espanhol. E o outro se chama A Loucura de Deus, de Alberto Maggi. Ele tem uma vasta obra e poucos livros dele estão traduzidos para português.

Temos que ter disciplina de luta, disciplina revolucionária, capacidade intelectiva, estudar, buscar fundamentação da nossa luta e da nossa fé. Nós não somos ingênuos, não estamos fazendo uma luta maluca, estamos fazendo uma luta histórica. Uma luta que vem da presença de Deus na história. Por isso que o Comblin marcou tanto a minha vida. Temos que ter muito presente a Trindade na mudança da sociedade, temos que ter uma espiritualidade, uma mística dessa transformação, um amor incondicional aos pobres e aos pequenos, com todas as dificuldades, com todos os conflitos e desafios.

Escolhi na minha ordenação o versículo de Paulo na primeira carta aos Coríntios: Deus escolheu o que é fraco para confundir o que é forte. Isso marca muito a minha vida. Eu quero sempre estar do lado dos fracos. Estar do lado dos fracos é se fazer fraco. Nós vamos lutar sempre desarmados. A nossa defesa sempre será testemunhar o amor e a vida. Por isso, muitos santos me são tão caros, como São Oscar Romero e a queridíssima Santa Irmã Dulce dos Pobres. Temos que tirar todo o misticismo que cobre a vida de Santa Irmã Dulce. Eu digo sempre que ela é a santa protetora das ocupações, porque ela ocupava todas as casas vazias em Salvador para colocar os doentes e as pessoas que não tinham onde ficar. Quando o prefeito chamou a atenção dela, ela disse: “Enquanto tiver casa vazia e pobre na rua eu vou colocar dentro da casa”. Assim, ela foi ocupando muitas casas até ir para o galinheiro.

Unidos na pluralidade

A nossa luta é histórica, tem que ter indicadores claros. E nós temos que estar unidos na pluralidade, na luta em conjunto com todos os grupos, religiosos, ateus ou de diversas denominações. Na comunhão fraterna e solidária, sem ter medo de lutar, sem ter medo do conflito, sem ter medo de enfrentar os desafios e as dificuldades. E sem ter medo de perder. Eu não tenho medo do fracasso. Numa sociedade como a nossa, o nosso lugar é do fracasso. Porque se nós não fracassarmos é porque nós aderimos a esse sistema injusto, idolátrico e genocida. Nós fracassaremos, mas lutaremos até o fim. Porque a nossa luta é a luta do crucificado ressuscitado, daquele que na cruz se entrega para viver para sempre uma vida indestrutível. Nós que estamos na Pastoral temos a visão religiosa comprometida, mas sem perder a importância da laicidade, do pluralismo e da diversidade. Eu insisto na defesa de todos os grupos minoritários, mesmo que muitas vezes eles sejam numericamente maioria, mas socialmente eles são minoritários. Defender, proteger e estar ao lado desses grupos e sermos aliados nessa luta incansável. Nós carregamos no corpo as marcas do nosso amor. Amemos até o fim, como diz o Evangelho de João: Tendo amado os seus que estavam no mundo, amou-os até o fim.”

Ilustração
Quinho
Fotos
1Raphael Calixto
2Bruno Timóteo
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