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Novo ensino médio?

Educadora contesta mudanças instituídas pela Medida Provisória 746 sobre segmento

“Há descaso histórico com a educação, com as escolas para os jovens, com o projeto de vida desses futuros cidadãos. A escola não é uma ilha, fora do tecido social. Ela se faz nessa tessitura e, ao mesmo tempo, contra ela”

Sílvia Contaldo
Foto-Olho-Silvia

“Novo ensino médio. Quem conhece aprova”. Esse é o mote da campanha veiculada pelo Ministério da Educação para divulgação das mudanças na estrutura e na composição de um novo ensino médio, instituídas pela Medida Provisória 746 de 22 de setembro de 2016. No entanto, parece não haver novidade, se estivermos de acordo com o que nos ensina o Aurélio, o do Dicionário. Novo é o que ‘acaba de nascer’, ou ‘que apareceu recentemente’, ou ainda o que se ‘encontra no início de um ciclo’. Permitindo-nos a contradição de termos, a novidade em questão já nasce velha. Trata-se de ato sumário do atual Poder Executivo que prescindiu da arte de partejar, de dar à luz a novos nascimentos mediante o diálogo, a conversa e o empenho coletivo para que o novo fosse o melhor possível. Mas, ao contrário, a Medida Provisória não traz a novidade de um novo ciclo. Disfarçando a realidade, pretende apresentar aos jovens ‘a roupa nova do rei’, cujo modelo pré-concebido e pré-determinado é ilusório. Está dito, dentre outros equívocos, que os jovens terão liberdade para escolher o que quiserem estudar. Se liberdade de escolha for a opção entre áreas de estudo hierarquizadas e disponibilizadas segundo os ditames do mercado, melhor seria renunciar à palavra liberdade. Não se trata de escolha e muito menos de liberdade. Mais uma vez a educação escolar fica submetida ao jugo de razões econômicas e serve de palanque para vozes que nada têm de novo para dizer. Reiteram velhas dicotomias – entre a prática e a teoria, entre as ‘exatas’ e as ‘humanas’, entre a vocação e a profissão, e insistem na divisão disciplinar, já ultrapassada e disfarçada em ‘percurso formativo’. Não cabe falar em ‘novo ensino médio’ se sequer cumprimos o ideal de Anísio Teixeira: ‘Educação não é privilégio’.

Os jovens que deveriam estar cursando o ensino médio estão, cada vez mais, fora da escola e seria uma aberração pedagógica pensar que esses jovens sentir-se-ão atraídos por um ‘novo’ ensino médio. Não há novo nem velho. Há descaso histórico com a educação, com as escolas para os jovens, com o projeto de vida desses futuros cidadãos. A escola não é uma ilha, fora do tecido social. Ela se faz nessa tessitura e, ao mesmo tempo, contra ela. É lugar de fortalecimento interior, de aperfeiçoamento e amadurecimento e não será com rearranjo de disciplinas ou com aumento de carga horária que os jovens se sentirão parte desse mundo. Ainda que a escola seja um dos poucos espaços de socialização, o que está posto ou o que se oferecerá a partir de 2018 é pouco. Muito pouco. Em data recente, 16 de fevereiro, a Medida Provisória foi sancionada pelo atual Poder Executivo, confirmando as ‘novidades anunciadas’: aumento da carga horária, de 800 para 1.400 horas anuais, obrigatoriedade de Português, de Matemática e da língua inglesa. História. Geografia, Biologia, Química e Física não são mais do currículo obrigatório. Os jovens estudantes, felizes e sorridentes – aqueles da propaganda –, já sabem de antemão o que devem e o que não devem cursar para a profissão escolhida. Impressiona sua determinação e clareza de horizontes definidos quando estão justamente vivendo as angústias e as indefinições próprias dessa etapa escolar. E, assim sendo, para que ‘perder tempo’ com disciplinas que parecem, à primeira vista, não se relacionar com o desejo imediato do jovem? Filosofia, Sociologia, Artes, Educação Física parecem saberes dispensáveis, que nada acrescentariam à sua formação. E mais: o tutor está dispensado de uma formação mais refinada. Basta o seu notório saber. Licenciaturas parecem ser tempo perdido! O professor, concebido como aquele que apenas ‘dá aula’, pode dispensar o aprendizado de conhecimentos mais ampliados e que, por isso mesmo, abarcam o universo das ciências, das artes, das linguagens e pode descartar momentos privilegiados de aprendizagens interdisciplinares, já que o jovem será preparado para contentar-se com um molde específico e adequado ao mercado de trabalho. Para que o universo da escola, constelações de saberes, se o que interessa é apenas o sucesso e êxito na vida profissional? Interessante lembrar que essa reforma foi concebida e sumariamente imposta, desconsiderando vozes de professores e profissionais da educação – em todos os níveis. Entre tantas, recordo aqui a de um dos maiores especialistas em Legislação Educacional: “Esta é a 16.ª reforma do ensino médio no País desde 1854 e ainda não resolvemos o problema. É impossível debater isso em 120 dias (prazo máximo para a tramitação da MP no Congresso). São necessárias mudanças, mas temos de evitar repetir erros do passado”. Assim reagiu o professor Jamil Cury, imediatamente após a publicação da referida Medida (em entrevista concedida ao Estadão, 25 de setembro de 2016). Quem conhece mais de perto a história da educação escolar em nosso país, pautada pela desigualdade, discriminação e exclusão, sabe que as consequências dessa medida ora sancionada serão nefastas.

Para que seja um novo ensino médio, para merecer esse adjetivo, precisamos mais de um concerto de vozes que vão se afinando na medida em que se executam a pauta, mas capazes de uma sinfonia, do que de um maestro que, sem qualquer conhecimento das notas musicais, quer impor um ritmo artificial e dissonante ao futuro das próximas gerações. Quem conhece o que aí está posto desaprova e acredita em outros tons capazes de rejeitar a antiutopia de Buzzati, na qual ‘homens e mulheres, depois do nivelamento […] eram todos mais ou menos tolos de capacidade mental bastante precária’ (La rivolta dei cretini, Corrieri della Sera, 23 de maio, 1967) . Quase podemos afirmar que aqui jaz o ensino médio, se se impuserem as mudanças que, em curto espaço de tempo, se anunciam. Triste nação, triste país, em que o novo nasce velho. Em tempos de neofilia desvairada vale a pena (des)conhecer o ensino médio e insistir no fortalecimento dos espaços dialógicos, ainda que conflitantes, nos quais as utopias se deixam alcançar.

 

Texto
Sílvia Contaldo
Coordenadora do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (Pibid PUC Minas) e docente do Departamento de Filosofia, com doutorado em Filosofia Medieval pela PUC-RS, a professora avalia as mudanças na estrutura e na composição do ensino médio, instituídas pela Medida Provisória 746, de 22 de setembro de 2016. Para a educadora, as mudanças submetem a educação escolar ao jugo de razões econômicas, de acordo com os ditames do mercado, reiterando “velhas discotomias – entre a prática e a teoria, entre as ‘exatas’ e as ‘humanas’, entre a vocação e a profissão, e insistem na divisão disciplinar, já ultrapassada e disfarçada em percurso formativo”. Sílvia Contaldo critica, ainda, a não obrigatoriedade de certas disciplinas, como História e Geografia, e o “descaso histórico com a educação”.
Foto
Raphael Calixto
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