Direito Por que elas desistem?
Pesquisa investiga as causas que levam mulheres vítimas de violência doméstica a abandonarem os encaminhamentos públicos
“Um relato que me chamou muita atenção foi de uma senhora que sofria agressões físicas, verbais, patrimoniais e psicológicas do próprio filho, que a extorquia”
Estudante de Direito Vanessa Sílvia Moraes, autora da pesquisaA luta pela dignidade e proteção às mulheres, encabeçada inicialmente pelos movimentos feministas, impulsionou a criação de políticas de caráter protetivo, como a Lei Maria da Penha (nº 11.340/2006) que completou, em 7 de agosto de 2016, dez anos de auxílio às mulheres vítimas de agressão e é reconhecida pela Organização das Nações Unidades (ONU) como uma das três melhores legislações do mundo no enfrentamento à violência contra as mulheres. Entretanto, ainda que haja avanços em termos de medidas legislativas, essas ainda não reduzem a alta taxa de mulheres agredidas diariamente. A cada ano, mais de um milhão de mulheres são vítimas de violência doméstica no país, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Atualmente, há uma queixa de agressão a cada sete minutos.
Os canais de queixa relacionados a agressão às mulheres são acompanhados de um aparato estatal de suporte às vítimas que prevê auxílio jurídico, psicológico e, em casos extremos, abrigamentos. No entanto, as políticas de encaminhamentos pós-queixa mostram-se, muitas vezes, falhas e ineficazes. O que, em muitos casos, levam as vítimas a abandonarem os trabalhos de acompanhamento do Estado.
Esse cenário instigou Vanessa Sílvia de Oliveira Moraes, aluna do 10º período do Curso de Direito do Campus Contagem, a desenvolver a pesquisa Análise da Resistência de Mulheres Vítimas de Violência Doméstica ao Acompanhamento nos Centros de Referência Especializado de Assistência Social (Creas), Pós-encaminhamento do Programa Mediação de Conflitos do bairro Jardim Teresópolis – Betim, na Região Metropolitana de Belo Horizonte.
A pesquisa concluiu que os fatores que levam essas mulheres vítimas de violência doméstica a abandonarem os encaminhamentos são múltiplos e possuem não só caráter subjetivo – de ordem pessoal de cada vítima analisada – como também objetivo, como, principalmente, a estrutura do aparelhamento público.
O trabalho da aluna, orientado pela professora Antônia Montenegro, foi desenvolvido por meio do Programa de Bolsas de Iniciação Cientítica (Probic) da PUC Minas, com financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (Fapemig), e premiado como o melhor da área de Direito no 23º Seminário de Iniciação Científica, em 2015.
No campo subjetivo, observam-se questões como dependência emocional e/ou financeira do agressor, preocupação com o destino dos filhos e falta de ter para onde ir. “Uma situação clara de violência conjugal relatada em uma das fichas é a de uma mulher, mãe de duas filhas, em uma relação de união estável com um homem que a mantinha presa em casa, não podendo nem mesmo lavar as roupas no quintal sem autorização do companheiro, pois podia ser vista por vizinhos. Essa mulher sofreu todo tipo de violência, inclusive sexual, e, quando denunciou as agressões, seu algoz foi liberado oito dias após a prisão. O seu interesse era conseguir abrigo para ela e para as filhas, temendo retaliação pela queixa, mas toda a burocracia necessária para essa providência inviabilizou a efetivação da medida. Perdeu-se o contato com essa atendida”, relata Vanessa.
Violência institucional
“A pesquisa demonstra que a lei protege, mas as políticas são falhas. O problema é sistêmico e o estado tem que atuar, de maneira integrada, em diversas frentes”
Professora Antônia Montenegro, orientadora da pesquisaJá nas questões objetivas, o que impede a continuidade nos acompanhamentos é o descrédito na atuação do poder público, por parte das usuárias. A insuficiência dos recursos materiais e humanos aplicados, a falta de um trabalho de rede, que não force a mulher a recontar sua história inúmeras vezes, e o despreparo de alguns profissionais que lidam com esses atendimentos são algumas das questões pertinentes à própria política de atenção à mulher vítima de violência, destacadas por essas mulheres como impeditivas.
“Um relato que me chamou a atenção foi de uma senhora que sofria agressões físicas, verbais, patrimoniais e psicológicas do próprio filho. Seu caso se arrastou sem solução, gerando o que eu posso chamar de uma revitimização, verdadeira violência institucional. Ela foi empurrada do Creas que atendia idosos para o que atendia mulheres e ninguém se responsabilizou. Não bastasse isso, ela foi expulsa de casa pelo filho e teve que morar de aluguel. A história se arrastou até quando ela foi desligada do programa por não haver mais qualquer orientação ou encaminhamento a ser dado ao caso. Uma mulher idosa, sofrendo simultaneamente diferentes violações, acionou o serviço público e seu caso não foi solucionado”, exemplifica.
De acordo com a professora Antônia Montenegro, para que o índice de evasão seja reduzido e a violência doméstica seja de fato combatida, é necessário que o poder público ofereça atendimento integral às vítimas, com políticas sociais agindo conjuntamente. “A pesquisa demonstra que a lei protege, mas as políticas são falhas. O problema é sistêmico, e o estado tem que atuar de maneira integrada. Precisa haver um conjunto de ações políticas, jurídicas, psicológicas e sociais”, opina. Ela ressalta que os atendimentos devem ser mais ágeis, para que a mulher fique menos tempo à mercê do agressor, lembrando que constantemente são noticiados casos de assassinatos a mulheres que estavam sob medida protetiva.
A cientista social ressalta que também é necessário estar atento ao agressor, pois o sistema prisional brasileiro é ineficaz no sentido de recuperar o indivíduo e reinseri-lo na sociedade. “Ninguém pensa em tratar o agressor. Ele é um doente também. O Estado tem que se organizar para garantir apoio, amparo, tratamento e punição”, diz a professora.
Para a professora, a militância feminista, que já conquistou a garantia de diversos direitos às mulheres, tem papel fundamental ao cobrar da sociedade que a integridade das mulheres seja assegurada. “A violência é incrustada na sociedade e as mulheres não podem baixar guarda em nenhum momento”, argumenta.
Mediação de conflitos
Durante seu estágio no Programa de Mediação de Conflitos – um dos cinco programas de prevenção à criminalidade da Secretaria de Estado de Defesa Social de Minas Gerais –, a estudante Vanessa atuava como mediadora. Um dos casos em que não cabia esse recurso conciliador era quando, no discurso da atendida, se constatava a violência doméstica. Nesses casos, a vítima era encaminhada aos Creas. “Fazíamos o acompanhamento e não foram raras as vezes que a vítima desistia. Isso gerou a vontade de investigar o porquê da evasão”, conta.
Inicialmente, a metodologia utilizada seria de entrevistas semiestruturadas com as próprias vítimas para identificar as causas e consequências das desistências. Entretanto, devido à dificuldade de abordar essas mulheres e convencê-las a expor suas histórias de violência, foi necessário alterar o método de trabalho para análise das fichas de atendimento. “Das 21 mulheres atendidas com histórico de violência doméstica, apenas uma aceitou a entrevista pessoalmente, o que já demonstrou as dificuldades que os programas enfrentam”, observa Vanessa.
As fichas, com dados pessoais de cada participante, além dos relatos de cada atendimento realizado pelo Programa de Mediação de Conflitos, foram analisadas quantitativa e qualitativamente. Essas fichas relatavam diferentes tipos de violência, buscando, na maioria das vezes, atendimentos para demanda de pensão alimentícia, divórcio e guarda dos filhos. Em comum, elas não ocultaram situações de agressão, embora grande parte tenha sido descrita de forma naturalizada. “É uma análise de um período determinado, de um local específico, mas que traduz e representa diferentes tipos de violência que atingem mulheres em todo o mundo, sem distinção de classe, raça ou grau de instrução”, ressalta.
Tipos de violência*
A pesquisa também classificou os tipos de violência detectados nos questionários socioeconômicos respondidos pelas vítimas nos primeiros atendimentos dos programas. A professora Antônia Montenegro ressalta, porém, que a violência doméstica é o embrião de todas as formas de agressão. “Uma criança que cresce vendo o pai espancar a mãe pode se tornar um adulto violento também”, ilustra.
As violências identificadas nas fichas foram enquadradas em classificações pré-existentes, como física, psicológica, sexual, verbal, patrimonial, institucional e moral.
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Violência física: ocorre quando uma pessoa, que está em posição de poder em relação à outra, causa ou tenta causar dano não acidental, por meio do uso da força física ou de algum tipo de arma que possa provocar lesões;
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Violência psicológica: por atuar no nível do inconsciente, afeta a autoestima e formação da personalidade das pessoas, produzindo danos nem sempre perceptíveis, mas igualmente degradantes e violadores dos direitos;
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Violência sexual: definida pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como todo ato sexual, ou tentativa em obtê-lo, sem o consentimento da mulher;
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Violência verbal: é uma das violências mais naturalizadas pelas vítimas e pela própria sociedade, quase não é vista como violência propriamente dita, normalmente tachada de “falta de educação” e “ignorância”;
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Violência patrimonial: é entendida como qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores, direitos ou recursos econômicos;
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Violência institucional: o Ministério da Saúde a define como a exercida nos e pelos próprios serviços públicos, por ação ou omissão;
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Violência moral: qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria.
* Definições retiradas da pesquisa Análise da Resistência de Mulheres Vítimas de Violência Doméstica ao Acompanhamento no Creas, Pós-encaminhamento do Programa Mediação de Conflitos do bairro Jardim Teresópolis – Betim