Odontologia Voltando a sorrir
Fruto de parceria com a PUC Minas, o Centrare atende pacientes com fissura labiopalatal
O tratamento ortodôntico em pacientes com fissura labiopalatal, popularmente conhecida como lábio leporino, e as pesquisas desenvolvidas nesta área pelo Mestrado em Ortodontia, do Programa de Pós-graduação em Odontologia da PUC Minas, têm contribuído para tornar o programa uma referência nesse tipo de tratamento. O ponto de partida foi a criação, em 2004, do Centro de Tratamento e Reabilitação de Fissuras Labiopalatais e Deformidades Craniofaciais (Centrare), fruto de parceria entre a PUC Minas e o Hospital da Baleia.
O Centrare está entre os cinco maiores centros de tratamento de anomalias craniofaciais do país, segundo o responsável pela área de Ortodontia do centro e professor da Universidade, Ildeu Andrade Júnior, sendo a PUC Minas a única instituição privada de ensino superior a prover este tipo de atendimento à população. Segundo informação publicada no site do Ministério da Saúde, um em cada 650 bebês no Brasil nasce com fissura labiopalatal, que é a anomalia craniofacial congênita mais comum e causa distúrbios funcionais e estéticos nos dentes e na face.
Atendimentos em diversas áreas da saúde são realizados pelo Centrare, como cirurgia plástica, enfermagem, fonoaudiologia, nutrição, ortodontia, otorrinolaringologia, psicologia e serviço social, gratuitamente, por meio do Serviço Único de Saúde (SUS). A PUC Minas atua na odontologia, nas especialidades ortodontia, odontopediatria, prótese, periodontia, endodontia, cirurgia bucomaxilofacial, dentística e implantodontia, sendo as demais áreas atendidas pelo Hospital da Baleia. Cinco mil pacientes já foram atendidos pela Universidade e cerca de 400 estão em tratamento, sendo que a cada semana são recebidos aproximadamente dez novos pacientes provenientes de todo o Estado de Minas Gerais.
Tratamento longo
“As causas são as mais diversas possíveis, como genéticas, hereditárias, ambientais (drogas, álcool, medicamentos, até mesmo cremes para a pele), nutricionais e virais”
Professor Ildeu Andrade Júnior, responsável pela área de ortodontia do CentrareSegundo o professor Ildeu, qualquer mulher, mesmo a mais saudável, pode gerar um bebê com essa fissura: “As causas são as mais diversas possíveis, como genéticas, hereditárias, ambientais (drogas, álcool, medicamentos, até mesmo cremes para a pele), nutricionais e virais. Muitas vezes a mulher descobre que está grávida após algumas semanas ou meses de gravidez. No entanto, a face do bebê se forma nos três primeiros meses. Então, se ela for exposta a alguns desses fatores citados, um distúrbio no desenvolvimento craniofacial da criança pode ocorrer, gerando a fissura labiopalatal”.
O tratamento é longo e muito complexo, como relata o professor. Muitas vezes os bebês são encaminhados ao Centrare ao nascer, pela maternidade, principalmente aqueles que precisam de orientação do nutricionista porque a má formação pode impedir a criança de mamar. A primeira etapa do tratamento se inicia aos três meses, que é o fechamento do lábio dos bebês que nasceram com ele aberto. Nos pacientes que nasceram com abertura no céu da boca, é feita uma cirurgia entre um ano e um ano e meio de idade. Quando os dentes começam a nascer, eles são encaminhados para a odontopediatria e, quando começa a trocar os dentes, para a ortodontia, porque muitas vezes é preciso prepará-lo para uma nova cirurgia, que é a de colocação de enxerto ósseo na região fissurada: “Como houve a fissura, muitas vezes esse osso tem uma falha. Então em alguns casos é necessário pegar o osso de outra região do corpo, e isso é feito aproximadamente aos nove anos”.
Após a troca dos dentes, será feita a fase corretiva da ortodontia. Alguns pacientes, inclusive, têm déficit de crescimento e desenvolvimento craniofacial, que podem gerar deficiências esqueléticas na face que somente serão corrigidas com tratamento ortodôntico em conjunto com a cirurgia bucomaxilofacial. “O ideal é que essa cirurgia seja realizada ao final do crescimento, que nos homens é por volta dos 18 anos e nas mulheres, dos 16”, afirma.
O professor reforça que, de modo geral, o tratamento começa ao nascer e termina ao final do crescimento. “A PUC Minas, através do Centrare, desenvolve um papel importantíssimo na vida desses indivíduos, que é sua reinserção na sociedade. Muitas dessas crianças, quando não recebem tratamento, principalmente em países subdesenvolvidos, são marginalizadas e retiradas do convívio social. A própria família esconde, não a levando nem para a escola. É um problema muito mais sério do que um simples tratamento”, reforça.
Dilma Maria Santos Souza Reis descobriu que a filha Maria Clara tinha fissura labiopalatal logo após o nascimento, pois nenhum exame pré-natal apontou a doença: “No começo, quando o médico me contou, foi um susto, mas ela está recebendo toda ajuda pediátrica, fonoaudiológica e odontológica”. A primeira cirurgia de Maria Clara foi aos sete meses de idade (para fechamento do lábio) e a segunda aos dois anos (para fechar o céu da boca). Hoje, aos nove anos, ela está usando aparelho para corrigir o céu da boca e depois colocar aparelho fixo. “Ela não tinha tanta dificuldade para falar, mas, após colocar o aparelho, deu uma melhorada. Aos poucos os dentes dela estão sendo colocados no lugar certo. Quando ficar adolescente ela vai fazer uma correção na gengiva para colocar enxerto, por conta de uma abertura no interior da boca, e também corrigir o nariz”, conta Dilma Maria.
Incentivo à pesquisa
Na busca de melhorias no tratamento e na vida desses pacientes, o Centrare vem servindo de inspiração para os alunos e professores desenvolverem pesquisas. Muitos desses trabalhos, inclusive, são publicados em revistas científicas de grande impacto e recebem prêmios nacionais e internacionais, como o segundo lugar no Congresso Americano de Ortodontia, concedido pela Associação Americana da área, em 2013, e o primeiro lugar no prêmio Sanifill, da Sociedade Brasileira de Pesquisa Odontológica, em 2011. De acordo com o coordenador do mestrado profissional em Ortodontia da PUC Minas, professor Dauro Douglas Oliveira, as revistas mais importantes da área no mundo já tiveram artigos publicados sobre pesquisas desenvolvidas no Centrare. “Como são pacientes com demandas múltiplas e dificuldades acentuadas para serem resolvidas, abre oportunidades para que nós possamos investigar possibilidades que gerem melhorias para essas pessoas”, afirma.
Desde 2008, o professor coordena um projeto de pesquisa, realizado juntamente com alunos e outros professores do mestrado, que avalia diferentes métodos no tratamento desses pacientes. Um dos resultados foi o desenvolvimento de uma patente registrada pelo Instituto Nacional da Propriedade Industrial (Inpi) e protegida pelo Núcleo de Inovação Tecnológica (NIT) da PUC Minas, de um aparelho com custo potencial até 50 vezes menor que o equipamento utilizado pelo serviço público no tratamento desses pacientes. O aparelho, que pretende aproximar dois segmentos do osso da boca do paciente que nasceu com uma fenda, é fruto da dissertação do aluno Vítor Francesconi Rodrigues, orientada pelo professor Dauro, e que foi defendida no final do ano passado. “Estamos associando um serviço para uma população altamente necessitada, cujo tratamento quase sempre é feito em universidades, pois em consultório particular é muito caro e demanda um conhecimento diferenciado. O aparelho, que no mercado é vendido entre R$ 25 mil e R$ 35 mil, é um gargalo no tratamento porque é a parte mais cara”, afirma. Os testes da patente em pacientes estão previstos para o segundo semestre deste ano. A concepção do aparelho é feita em conjunto com o Programa de Pós-graduação em Engenharia Mecânica da Universidade.
Outro resultado desse projeto de pesquisa é a parceria internacional com o mestrado em ortodontia da Case Western Reserve University, da cidade de Cleveland, em Ohio, nos Estados Unidos. “Dez dos nossos alunos já tiveram a oportunidade de passar um mês lá, levando amostras de imagens dos pacientes e as analisando nessa universidade, que possui um dos principais centros do mundo de estudo do crescimento do crânio e da face, e que existe desde 1937. Da mesma forma, já recebemos dez alunos dessa universidade americana, que ficaram por aqui uma semana tendo aulas o dia todo, frequentando e conhecendo o trabalho da Clínica de Ortodontia da PUC Minas no atendimento a pacientes do Centrare”, diz.
Vantagem profissional
O professor Ildeu acredita que os alunos da Universidade possuem vantagem no mercado de trabalho: “Muitos dentistas não fazem esse serviço porque não foram expostos de forma prática nos cursos. Já nossos alunos saem capacitados para esse tratamento, que é bastante complexo e interdisciplinar, e que nenhuma outra universidade faz no nosso Estado. Somos um centro de formação de profissionais especializados. Hoje são mais de cem alunos envolvidos, entre os da graduação e da pós-graduação, além de vários professores que os orientam”.
A aluna do mestrado profissional em Ortodontia Fabíola Brasil Roberto veio de Manaus (AM) para estudar na Universidade. Ela conta que atende cerca de dez pacientes com fissura por semana e que essa experiência está agregando muito em sua carreira. “O mestrado da PUC Minas é um diferencial. Aqui temos contato com diversos pacientes, cada um com um caso diferente. São horas fazendo diagnóstico, tratando deles efetivamente, participando das cirurgias e vendo os resultados. Isso nos dá um respaldo muito grande para atender esses pacientes”.
Fabíola afirma que mesmo para os alunos que não queiram trabalhar com pacientes fissurados, a experiência obtida no Centrare também os ajuda a tratar pacientes que precisam de cirurgia por outras disfunções. “Aqui ganhamos uma capacidade muito maior de diagnóstico, planejamento e execução do tratamento. Desse modo, temos mais condições de precisar qual a cirurgia é mais indicada, qual o tipo de tratamento a ser feito e qual o momento ideal para fazê-lo, adaptando a realidade do paciente de forma personalizada”, afirma.
Ela conta que é um desejo trabalhar com pacientes com fissura labiopalatal quando voltar para Manaus e que se sente preparada para isso, apesar de o atendimento em si incluir o trabalho de profissionais de outras áreas, como o cirurgião plástico, psicólogo, fonoaudiólogo, por exemplo, para que o acompanhamento seja feito de forma integrada e mais efetiva, que é o ideal. “Facilitaria muito a vida daqueles que precisam sair do Amazonas para ser atendido em outros estados. Além disso, muitos deles não têm condições de procurar ajuda fora e ficam com a qualidade de vida prejudicada”, disse.
Além da experiência profissional dos alunos, o professor Ildeu afirma que o maior benefício é para o paciente e sua família. “O bem que a gente leva a essas pessoas é cativante. Todos ficam muito emocionados. É uma grande alegria capacitar alunos para esse tipo de tratamento”, constata. Para o professor Dauro, o Centrare representa um dos grandes exemplos da essência da PUC Minas, que é o ensino, a pesquisa e o acolhimento a pessoas necessitadas. “Vir aqui e conviver com esses pacientes, que têm demandas tão importantes, com dificuldade de convivência social, e vê-los no início do tratamento, em que muitos não sorriem, e, ao final do processo, quando termina o tratamento, escutá-los dizendo que estão felizes e como mudamos a vida deles, não tem preço”, conta.