revista puc minas

Artigo
O despreparo para lidar com as pessoas com deficiência

Ilustra----o-artigo-Fernanda-Paula-Diniz

Entender os direitos desses indivíduos tem o poder de viabilizar-lhes o exercício da cidadania

“Não só aquele que tem deficiência tem necessidades especiais. Uma criança, uma grávida, um idoso também as têm. Desse modo, a expressão ‘politicamente correta’ de pessoa com necessidades especiais cai por terra.”

Em certo momento de minha carreira docente, na área jurídica, me deparei com alunos com deficiência. Vi que apesar de possuir certa experiência acadêmica, me faltava traquejo e conhecimento para lidar com eles. Como ensinar títulos de crédito para um aluno com baixa visão? Eu não poderia mais continuar a fazer uma representação na lousa, por exemplo. Como aplicar a prova a um aluno com deficiência motora grave, e que por isso não podia escrever? Ou ainda: eu poderia entender que um tratamento diferenciado, como tolerar um atraso de um aluno com dificuldade de locomoção, não seria um privilégio, mas um incentivo e um ato de inclusão?

Tive que me reinventar. Não afirmo isso de forma orgulhosa, mas para mostrar que eu não estava preparada. Procurei ajuda dentro da Universidade que, felizmente, possui o Núcleo de Apoio à Inclusão (NAI), estudei, e pude ser — ou ao menos tentar ser — a professora que esses alunos precisavam.

Esses fatos me abriram os olhos. Passei a olhar ao meu redor. Banheiros sem adaptação. Calçadas com buracos e desníveis. Livros sem tradução para braille ou áudio. Caixas eletrônicos, restaurantes, praias, clubes, cinemas, prédios públicos, estádios: todos inacessíveis. Falta de representatividade. Produtos essenciais negados. Meios de transporte inadequados. Direito de voto cerceado. Tutela à saúde precária. Execução indigna da pena. Educação especial e suas nuances… Da mesma forma que eu nunca havia me preocupado com essa realidade, pude perceber que a sociedade, de forma geral, também não estava. E quando falo em sociedade, incluo aqui também os próprios indivíduos com deficiência. As pessoas não têm a real dimensão dos seus direitos, nem das suas obrigações.

Descobri, assim, um farto campo de estudo e percebi que entender os direitos das pessoas com deficiência tem o condão de viabilizar o exercício da cidadania dessas pessoas, e ainda de garantir-lhes o merecido respeito.

O primeiro passo, para tanto, foi conhecer a nomenclatura adequada. Pessoa com necessidades especiais? Portador de deficiência? Aprendi com um aluno com deficiência, que uma vez me corrigiu. Nada de contornos. Não só aquele que tem deficiência tem necessidades especiais. Uma criança, uma grávida, um idoso também as têm. Desse modo, a expressão “politicamente correta” de pessoa com necessidades especiais cai por terra. Portador? Também não. Não se carrega uma deficiência, bem como não se pode tirá-la para uma pausa. Assim, o que importa é o indivíduo, e, portanto, temos a pessoa ou indivíduo com deficiência, que faz parte do que ele é.

Outro ponto interessante foi conhecer o histórico do movimento de pessoas com deficiência. A marca da exclusão sempre presente, com o tratamento discriminatório e humilhante a que foram submetidos por muito tempo. Foram banidos, chamados de aleijados, defeituosos e de loucos, foram deixados em manicômios e hospitais. Isso foi crucial para entender a necessidade do desenvolvimento de ações afirmativas e políticas de inclusão adotadas ainda hoje, e que ainda são objeto de críticas por várias pessoas, como a política de cotas para concursos públicos.

Ao iniciar o estudo da legislação brasileira, me vi perdida numa infinidade de temas, leis e possibilidades. Mergulhei num mundo diferente e acho que ainda vou demorar a conseguir sair dele e sistematizar alguma coisa. O Direito da Pessoa com Deficiência é um verdadeiro microssistema, tão abrangente que ainda vou levar uns bons anos nesse estudo.

Mas o que me alegra é que a preocupação com as pessoas com deficiência ganha novo fôlego, sobretudo com a entrada em vigor da Lei Brasileira da Inclusão (Lei 13.146/2015), que traz à tona a discussão de vários pontos, e torna quase obrigatório o seu estudo em razão dos seus reflexos nas mais diversas áreas do conhecimento jurídico.

Todavia, muito ainda é necessário. Fazer leis, tão somente, não resolve problemas (a exemplo do que aconteceu com o Estatuto do Idoso). Imperioso o desenvolvimento de uma nova mentalidade, com o estudo e a divulgação do conhecimento construído sobre o assunto, da legislação, e com a prática de fiscalização, para garantir a efetivação dos direitos dessas pessoas.

Hoje, enquanto estudo e escrevo, vejo os rostos dos meus ex-alunos e agradeço por terem sido parte dessa transformação, e por me fazerem enxergar essa temática. O medo que senti se transformou em vontade de construir respostas. Mas não basta uma pessoa. Assim, por tudo que foi exposto, fica o meu convite para uma reinvenção àqueles que leem esse pequeno texto: passem a olhar o seu redor de forma diferente. Esse é o primeiro passo. E assim, com a construção de uma empatia coletiva, podemos nos preparar e tratar as pessoas com deficiência da forma com que elas merecem.

Texto
Fernanda Paula Diniz
A advogada e professora de Direito Civil, Direito Empresarial e do Serviço de Assistência Judiciária (SAJ) do Campus Contagem relata, em artigo, sua experiência na docência diante de alunos com deficiência e ações para se inteirar melhor desta realidade. Ela faz um convite a todos: o de olhar ao redor de forma diferente para que, “com a construção de uma empatia coletiva, possamos nos preparar e tratar as pessoas com deficiência da forma com que elas merecem”.
Ilustração
Quinho
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