Artigo
Cem anos da Revolução Russa
Algumas reflexões sobre um dos movimentos que transformaram os rumos da humanidade
"A transformação do marxismo em doutrina de Estado deturpou a natureza dialética e revolucionária da própria teoria marxista, tornando-a incapaz de teorizar, de enfrentar e de refletir sobre os novos problemas gerados pela própria experiência da construção do socialismo."
Júlio César BuéreO tempo se desenvolve, por vezes, de forma tão lenta, que passa a impressão de estar imóvel. No entanto, em alguns momentos, acontecimentos aceleram de tal forma o tempo que acabam por se constituírem em marcos indeléveis da História.
Certamente a Revolução Russa de 1917 é um desses acontecimentos. Muitas revoluções ocorreram na História. No entanto, somente algumas ultrapassaram seus próprios espaço e tempo. Assim, a Revolução Russa, juntamente com a Revolução Industrial e a Revolução Francesa, transformou os rumos da humanidade em todos os sentidos.
O legado histórico da Revolução Russa é imenso. Impossível descrevê-lo em poucas linhas. Além do que, certamente qualquer lista que se faça trará consigo polêmicas, discordâncias e menções a algo que não foi lembrado ou, por outro lado, muito valorizado. Assim é que se reconhece que as menções aqui são apenas pontos iniciais para reflexões mais aprofundadas.
A Revolução Russa foi a primeira experiência histórica de tentativa de estruturar uma alternativa viável ao capitalismo. Nesse sentido, torna-se uma referência real, porque vitoriosa, para todos os movimentos sociais. Se a Revolução Francesa deixou como herança a ideia dos direitos humanos e da cidadania, a Revolução Russa, por sua vez, problematizou a questão da desigualdade no mundo moderno e contemporâneo. As temáticas que pregavam a emancipação econômica, a libertação do capitalismo e a possibilidade de construção do seu próprio desenvolvimento incendiaram a imaginação dos operários, dos camponeses e, principalmente, das lideranças anticapitalistas. A constituição de um Estado Socialista indicava que a revolução era possível.
O papel decisivo exercido pelos soviéticos na resistência e combate ao nazismo e fascismo durante a II Guerra Mundial deu um protagonismo significativo à URSS no sistema internacional.
Após a II Guerra, as revoluções socialistas se alastraram pelo mundo de tal forma que um terço da humanidade passava a viver sob a égide desses regimes.
Ainda que de forma indireta, os avanços e conquistas sociais nos países capitalistas foram produto não só do crescimento dos movimentos sociais, como também do medo das elites do mundo capitalista que, se sentindo ameaçadas, passaram a incorporar direitos sociais através da estruturação de Estados do Bem-estar Social na Europa e na formação de Estados populares e populistas em países periféricos.
Os Estados socialistas ainda contribuíram decididamente para os processos de descolonização e emancipação da Ásia e da África, através do apoio econômico, político, ideológico, militar e diplomático.
No caso específico do Brasil, contribuíram para a formação do Partido Comunista (1922) e, posteriormente, para o surgimento de outras formações partidárias de esquerda, fortalecendo, assim, o movimento operário e sindical.
Por outro lado, contrastando com as grandes contribuições, há que se mencionar os problemas oriundos do processo de constituição da estrutura econômica e política do Estado Soviético.
O grande fracasso da Revolução foi não conseguir compatibilizar os avanços alcançados no campo econômico, estratégico e social com a estruturação de uma forma de democracia alternativa ao mundo liberal capitalista. As lições extraídas por Marx da experiência da Comuna de Paris apontavam para a generalização de formas de democracia direta e participativa. Como se sabe, não foi exatamente o que se consolidou como forma dominante de Estado na URSS. A Guerra Civil, os problemas econômicos e o cerco contra-revolucionário enfrentado pela URSS obrigaram os revolucionários a uma centralização autoritária do poder. O que era para ser provisório se tornou permanente.
O que se observou foi a crescente fusão do partido bolchevique com as estruturas do Estado e a própria estrutura vertical-hierárquica do partido se sobrepondo aos mecanismos de controle democrático, previstos na constituição dos poderes soviéticos. Portanto, fracassou a construção de uma alternativa democrática socialista em relação à democracia representativa liberal-capitalista.
Ao mesmo tempo, para enfrentar a crise econômica, Lenin optou pela manutenção do sistema produtivo taylorista nas fábricas. Assim, o processo de implantação de um sistema de autogestão, democracia e socialização das decisões é abandonado em seu nascedouro.
Outro grande equívoco foi querer transformar a via revolucionária russa em um modelo único a ser seguido por todas as revoluções. Celebrada como uma das possibilidades de instituição do socialismo, acabou por se tornar a via única e necessária. As outras propostas de estruturação da sociedade e do Estado apresentadas por anarquistas e outras correntes do socialismo foram duramente reprimidas ou classificadas como utópicas e não científicas.
A imposição de um modelo único de socialismo foi fruto desse equívoco de interpretação da teoria marxista, transformando-a em uma doutrina de Estado. A transformação do marxismo em doutrina de Estado deturpou a natureza dialética e revolucionária da própria teoria marxista, tornando-a incapaz de teorizar, de enfrentar e de refletir sobre os novos problemas gerados pela própria experiência da construção do socialismo.
No campo cultural, a efervescência de manifestações revolucionárias cubistas, dadaístas, construtivistas e surrealistas com a participação ativa de artistas dentro e fora da Rússia, vai dando lugar, principalmente sob a Era Stalinista, a uma perspectiva de arte autoritária imposta pelo Estado denominada de “Realismo Socialista”.
As políticas reformistas implantadas após a morte de Stalin e, principalmente, a partir dos anos 1980, não foram suficientemente profundas para reverter o modelo e criar um socialismo de novo tipo.
A Revolução Soviética, segundo Norberto Bobbio, “fascinou poetas e escritores, despertou a esperança dos pobres, impeliu homens com elevado senso moral a enfrentar, por ela, torturas, prisões e exílios”. Os pobres e desvalidos continuam condenados a viver em um mundo de injustiças e desigualdades. Para eles, principalmente, a busca por uma sociedade mais justa e igualitária ainda alimenta seus sonhos e desejos. Essa utopia certamente não cabe mais no modelo de Estado socialista nascido da Revolução Russa.
De qualquer forma, a renúncia deste modelo, que fracassou ao não cumprir a promessa de libertação do ser humano, se constitui, ela própria, como um legado importante para que se busquem outras alternativas para a humanidade.
Para Hobsbawm, “o mundo que se esfacelou no final dos anos 1980 foi o mundo formado pelo impacto da Revolução Russa”.
Assim é que o fim da URSS, em 1991, tornou-se também um marco divisor da história.