revista puc minas

Especial Tolerância zero

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A intolerância tem se revelado de forma marcante em diversos campos, como o político, religioso, sexual e racial

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“No caso dos africanos e haitianos, a questão racial é marcador social que dificulta a inserção deles na sociedade brasileira, porque são negros”

Professor Sidney Silva

Os atentados que ocorreram em cinco pontos turísticos de Paris, no dia 13 de novembro de 2015, e que deixaram 129 mortos no pior ataque da história recente da França; os embates fervorosos nos últimos meses entre eleitores, e até mesmo parlamentares, dos dois principais partidos políticos do Brasil pelas redes sociais e pessoalmente; a agressividade contra imigrantes de países hispano-americanos e africanos; os episódios recorrentes de intransigência religiosa e racismo e a hostilização contra membros da comunidade LBGT. Todos têm como ponto de convergência a intolerância. Tão antiga quanto a história da humanidade, a intolerância parece ter ressurgido com mais força nos últimos meses, potencializada pela rapidez e visibilidade da tecnologia da informação, principalmente das redes sociais.

No livro A Intolerância, resultante do foro internacional sobre o tema, realizado em 1997 na Universidade de Sorbonne, em Paris, o filósofo e pensador francês Paul Ricouer diz que a intolerância tem sua origem em uma predisposição comum a todos os humanos, a de impor suas próprias crenças, suas próprias convicções, desde que disponham, ao mesmo tempo, do poder de impor e da crença na legitimidade desse poder. Dois componentes são necessários a todos os tipos de intolerância, segundo o filósofo: a desaprovação das crenças e das convicções do outro e o poder de impedir que este outro leve uma vida como bem entenda. Características essas que são identificadas em episódios que ilustram os mais variados tipos de intolerância nesta reportagem.

Exemplo disso são as reações geradas pela grande entrada de imigrantes hispano-americanos e africanos no Brasil. O professor Sidney Silva, do Programa de Pós-graduação em Antropologia da Universidade Federal do Amazonas, diz que a chegada desses imigrantes, principalmente a partir da segunda metade do século 20, tem gerado estranhamentos, conflitos e, em alguns casos, a violência física. “Outra forma de intolerância é a relação feita com frequência pela mídia sensacionalista entre bolivianos e trabalho escravo. Já em relação aos africanos a intolerância se manifesta, às vezes, de forma sutil e dissimulada, ou de forma direta, com agressões verbais.”

O professor Sidney Silva diz que, no caso dos hispano-americanos, existe uma diferenciação étnica e cultural. Para ele, um chileno ou argentino não enfrenta os mesmos preconceitos vivenciados por um boliviano ou peruano. “No caso desses últimos, a origem étnica e social tem um peso maior, pois são identificados como indígenas, pessoas pobres e de pouca cultura. No caso dos africanos e haitianos, a questão racial é marcador social que dificulta a inserção deles na sociedade brasileira, porque são negros. E, como negro, o lugar social dele já está demarcado, ou seja, deverá ocupar os postos de trabalho mais pesados e sujos, resquícios de uma mentalidade colonial e racista.”

Em tempos de crise econômica, a tendência é que a intolerância contra imigrantes hispano-americanos, haitianos e africanos aumente. “Os migrantes se transformam em ‘bodes expiatórios’ da crise, ou seja, são acusados de ‘roubarem’ os poucos empregos existentes. Contudo, em tempos de expansão econômica eles são a solução”, diz o professor Sidney Silva.

Orientadora Social do Centro Zanmi, Serviço Jesuíta a Migrantes e Refugiados, Aline Magalhães diz que as queixas de haitianos que se encontram em Minas Gerais são frequentes e se referem principalmente à xenofobia e ao racismo. “Isso tem ocorrido principalmente nos locais de trabalho”, diz Aline Magalhães. Segundo ela, atualmente em Minas Gerais a população de haitianos é estimada entre 4 mil e 10 mil pessoas, com a maior concentração em Contagem. O Centro Zanmi possui uma parceria com a Arquidiocese de Belo Horizonte.

Discriminação religiosa

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“Num Estado laico, a legislação e os agentes públicos têm que garantir que as pessoas tenham liberdade e possam expressar até mesmo suas convicções religiosas”

Professor Wagner Lopes Sanchez
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“O estado brasileiro é laico e pluralista, acolhe todas as religiões sem aderir a nenhuma. Não é lícito que uma religião imponha à nação seus pontos de vista”

Professor e pesquisador
Gilbraz Aragão

No Brasil, as denúncias de discriminação religiosa recebidas pelo Disque 100 (Disque Direitos Humanos) atingiram no ano de 2015 seu maior número desde 2011, quando o serviço passou a receber esse tipo de denúncia. Foram 252 casos reportados ao serviço da Secretaria de Direitos Humanos do governo federal. Houve um aumento de 69% em relação a 2014 e a maioria dos fatos envolveu o Povo de Santo das religiões afro-brasileiras, com cultos de imprecações cristãs contra os seus terreiros e agressões aos seus símbolos e aos seus membros.

Casos como o da garota Kailane Campos, de 11 anos, têm sido mais frequentes. Ao sair de um culto de candomblé, no subúrbio do Rio de Janeiro, no domingo, 14 de junho de 2015, ela foi apedrejada. Dois homens, que seguravam bíblias, foram responsáveis pela agressão. Avó da garota, Káthia Marino, iniciada no candomblé há mais de 30 anos, disse que nunca havia passado por uma situação como essa.

Não somente as religiões de matriz africanas são alvo de intolerância religiosa. Em 2014, uma série de ataques a igrejas católicas foi registrada pela polícia mineira. Entre março e agosto daquele ano, pelo menos sete igrejas do interior de Minas Gerais foram incendiadas e tiveram suas imagens quebradas. Esses crimes ainda estão sendo investigados.

Para o professor Wagner Lopes Sanchez, do Departamento de Ciência da Religião da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, a intolerância que destrói igrejas católicas é a mesma que destrói símbolos e terreiros de candomblé e umbanda. “Num Estado laico, a legislação e os agentes públicos têm que garantir que as pessoas tenham liberdade e possam expressar até mesmo suas convicções religiosas.”

De acordo com o professor Wagner Sanchez, a sociedade brasileira é caracterizada pela presença de diversas raízes culturais (indígena, africana, europeia e asiática), por isso a presença da intolerância religiosa tem sido uma constante nos últimos 500 anos. “Podemos apontar duas razões. Uma primeira razão é que o encontro da cultura europeia com a cultura indígena, e depois com a africana, em solo brasileiro, foi feita com base na negação dessas culturas. Essa negação levou à rejeição e à demonização das culturas nativas. Uma segunda razão está relacionada com a mentalidade fundamentalista presente, sobretudo, em grupos e igrejas evangélicas de perfil proselitista. Essa mentalidade fundamentalista nega-se a reconhecer a legitimidade das outras crenças e o direito de elas se expressarem.”

Pastor metodista e professor de Ciências da Religião da Universidade Metodista de São Paulo, Cláudio Ribeiro diz que, até a década de 1970, os grupos evangélicos sofriam forte reação e intolerância dos católicos. “Essas práticas discriminatórias tinham (e em certo sentido ainda têm) implicação na vida social cotidiana. Escolas públicas que adotavam doutrinas católicas, espaços públicos que consideram como único e verdadeiro somente o catolicismo, e favorecimentos na mídia, no Estado, nas empresas e outros tantos aspectos, colaboram para uma negação da existência dos grupos evangélicos.”

O professor e pesquisador em Estudos de Religião da Universidade Católica de Pernambuco Gilbraz Aragão diz que é preciso invocar a laicidade para pôr fim à intolerância religiosa. “O estado brasileiro é laico e pluralista, acolhe todas as religiões sem aderir a nenhuma. Não é lícito que uma religião imponha à nação seus pontos de vista e não podemos deixar os espaços públicos republicanos serem ostensivamente ocupados e controlados por quaisquer comunitarismos ou igrejas.”

Racismo disseminado
nas redes sociais

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“Vários discursos racistas apareceram (...), discursos inclusive mandando os negros voltarem para a África, como se nós estivéssemos ‘roubando’ algo de alguém”

Lívia Teodoro
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“A facilidade de manifestação de pensamento, na rede, encoraja os usuários a dizerem livremente o que desejam, sem qualquer filtro ético ou moral”

Professora Renata Furtado

Manifestações racistas, outra demonstração de intolerância, também têm sido disseminadas pelas redes sociais. A estudante Lívia Teodoro, 24 anos, foi aprovada em primeiro lugar no curso de História da UFMG, no Sisu 2016 com notas do Enem 2015. Quando publicou em sua página do Facebook a conquista da vaga, ela se assustou com a grande quantidade de comentários de cunho racista, contrários, sobretudo, à existência de um sistema de cotas para negros. A resposta veio em forma de uma nova postagem. “Vários discursos racistas apareceram (…), discursos inclusive mandando os negros voltarem para a África, como se nós estivéssemos ‘roubando’ algo de alguém”, dizia um trecho do texto. “Alguns comentários eu preferi nem ler, mas a maior parte deles veio de pessoas que ignoram completamente a história do Brasil. Desconhecem totalmente que o sistema de cotas raciais é uma conquista do movimento negro”, disse Lívia Teodoro.

Ela obteve uma nota que, em números absolutos, a deixaria classificada a ingressar na UFMG fora do sistema de cotas. “Independentemente disso, não fosse o sistema de cotas, dificilmente eu tentaria a entrada numa universidade pública porque passei por um sistema defasado, que não me dá o direito de concorrer em pé de igualdade com a maioria dos estudantes que estão na UFMG vindos de escolas particulares, que, por vezes, conseguem pagar um cursinho que equivale ao meu salário mensal”.

Neta de uma analfabeta e filha de uma mulher que não terminou o ensino primário, Lívia, ao concluir o curso, será a primeira a se formar no ensino superior em sua família, tanto do lado paterno quanto do lado materno. “Minha avó e minha mãe ficaram deslumbradas quando souberam que eu entraria numa universidade pública”, diz a futura historiadora, que atualmente é blogueira, designer gráfico e diretora do Clube das Blogueiras Negras de Beagá.

Para a professora Renata Furtado de Barros, do Curso de Direito do campus Arcos e Praça da Liberdade da PUC Minas, o grande fator que contribui para o aumento da intolerância nas redes sociais é o próprio meio virtual. “A facilidade de manifestação de pensamento, na rede, encoraja os usuários a dizerem livremente o que desejam, sem qualquer filtro ético ou moral. Há uma sensação de liberdade total e de impossibilidade de sofrer qualquer penalidade na manifestação de pensamento por meio da internet”. De acordo com a professora Renata se, por um lado, é positiva a democratização do acesso à internet, para que todos possam manifestar seus posicionamentos de forma democrática, por outro essa liberdade permite que os intolerantes também defendam seus pontos de vista.

A professora Renata Barros lançou recentemente o livro Guerra Cibernética, fruto da tese de doutorado em Direito Internacional na PUC Minas, que trata o ciberespaço como um novo domínio relacional, no qual ocorrem conexões interativas, no âmbito nacional e internacional, que requer um olhar apurado do Direito para os perigos que representa. Os pontos principais abordados tratam da preservação da soberania dos Estados, no âmbito do ciberespaço, e da necessidade de se atentar para a defesa do Direito Internacional e dos direitos humanos nesse novo domínio. “Vislumbra-se interpretar o ciberespaço como um condomínio global a ser utilizado e regulado por toda a humanidade com responsabilidade”, explica a professora.

Agressões contra a população LGBT

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“A violência contra a população LGBT é diversa, multifacetada e consistente. Isso significa que existem vários tipos de violência em âmbitos diferentes, que ela se apresenta por meio de diferentes formas e é reiterada cotidianamente”

Professor Marco Aurélio Máximo Prado

A forma violenta da intolerância também pode ser verificada quase que diariamente em ações contra a população LBGT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros). “A violência contra a população LGBT é diversa, multifacetada e consistente. Isso significa que existem vários tipos de violência em âmbitos diferentes, que ela se apresenta por meio de diferentes formas e é reiterada cotidianamente”, diz o professor Marco Aurélio Máximo Prado, coordenador do NUH (Núcleo de Direitos Humanos e Cidadania LGBT) da UFMG. Segundo Prado, não existem dados confiáveis sobre as agressões contra a população LGBT. Um dos motivos prováveis é porque há subnotificações, que ocorrem quando não há o registro da violência em órgãos públicos oficiais, como as delegacias e secretarias de segurança. “Mesmo assim é possível afirmar que vivemos uma guerra civil quando pensamos em violência contra LGBTs”, diz o professor.

O Ministério da Educação (MEC) enviou, em 2013, material educativo com conteúdo de combate à homofobia a 13 estados das regiões Norte e Nordeste. Tratava-se de revistas em quadrinhos com foco no público adolescente, como parte do programa de prevenção de doenças sexualmente transmissíveis. O material ficou popularmente conhecido como “kit anti-homofobia”. Dias depois, no entanto, o MEC interrompeu a distribuição, alegando que o material não havia passado por controle do conselho editorial e não teve revisão do MEC.

Na opinião do professor Marco Prado, a retirada do kit representou um retrocesso na política do estado brasileiro porque o material educativo é uma forma de aprendizado. “O que vemos é que nem o Estado nem a sociedade avançam o suficiente para dizer: ‘nós queremos aprender as novas formas de falar, perceber, conviver com as múltiplas sexualidades e gêneros no contemporâneo’. O impedimento de que cidadãos e cidadãs aprendam o novo significa reduzir a escola pública para um sistema medieval onde se ensina a intolerância.”

Tramitou no Congresso um projeto de lei – o 122/2006 – que criminalizava a homofobia. Para o professor Marco Prado, mais do que medidas que criminalizam a homofobia, a necessidade maior é de políticas públicas específicas de enfrentamento da violência social e cultural contra a população LGBT e a promoção e equivalência de direitos desta população. “Temos que pensar em mecanismos institucionais educativos e preventivos”, defende o professor.

Desafios para uma política renovadora

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"Tal cenário empobrecedor, no nosso caso, tem se nutrido da baixa qualidade de uma classe política que se mostra cada vez mais insensível diante da movimentação da sociedade em busca de seus direitos e de seus interesses”

Milton lahuerta

Milton Lahuerta é doutor em Ciência Política pela USP e coordena o Laboratório de Política e Governo da Unesp, onde leciona Teoria Política. Desenvolve pesquisas sobre relação entre cultura, política, senso comum e conhecimento especializado e sobre relações entre instituições políticas e tradição ibérica. Escreveu os livros Sociedade Pós-tradicional : que sociedade é essa? (2004) e A invenção do futuro e a refundação da república (2006). Nesta entrevista à Revista PUC Minas, Lahuerta fala sobre intolerância política e disseminação do ódio nas redes sociais.


No Brasil houve várias situações de intolerância de forma clara nas últimas eleições, como a radicalização de eleitores dos dois principais partidos se agredindo nas redes sociais ou pessoalmente. Por que essa intolerância está aumentando? Qual seria o limite?

 

MILTON LAHUERTA: Sem dúvida, as situações de intolerância cresceram muito nos últimos tempos, ultrapassando todos os limites da razoabilidade, no que se refere ao nível de agressão, às mentiras e às baixarias. Talvez, uma das razões para isso ter ocorrido esteja na estratégia adotada pelo PT, principalmente depois da reeleição de Lula, em 2006, de dividir artificialmente a sociedade brasileira entre direita e esquerda, entre pobres e ricos, e entre Norte e Sul. Os governos Lula e Dilma converteram em diretriz de conduta uma polarização forçada com o PSDB, que congelou a política do país num paralisante sistema de vetos cruzados. Com isso, os dois partidos com origem socialdemocrata e intenções reformistas passaram a se engalfinhar destrutivamente, contribuindo para restringir a qualidade da competição política e empobrecendo drasticamente o debate democrático. A justificativa para a polarização foi a de que era necessário demarcar a diferença entre os dois “projetos”, mas lamentavelmente eles não foram apresentados de modo claro e sistemático à opinião pública. De tal modo que a reiteração da polarização nesses termos tem significado a perpetuação de um modo de fazer política atrasado, que se sustenta em coalizões de ocasião, sem compromisso algum com as reformas que o país deve fazer. Durante a campanha eleitoral de 2014, essa polarização artificial chegou a seu ápice, como se estivéssemos vivendo numa guerra civil, com a exacerbação do maniqueísmo intolerante e destrutivo. Justamente por isso não dá para prever o seu limite. Até porque, das eleições para cá, a intolerância só fez aumentar, turbinada por um complexo processo de “judicialização da política”, que está aprofundado ainda mais o falso moralismo e a polarização plebiscitária.


Por que está cada vez mais difícil aceitar pacificamente uma opinião contrária?

 

MILTON LAHUERTA: Pela baixa qualidade de nossa cultura política no que se refere à aceitação do pluralismo e da complexidade que caracterizam as sociedades contemporâneas. Com isso, não assimilamos historicamente alguns dos valores mais caros do liberalismo, por exemplo, o da tolerância. Tendemos, talvez em virtude da forma como a sociedade brasileira batalhou contra a ditadura, a cristalizar a luta política em dois grandes campos antagônicos, reiterando assim comportamentos tipicamente plebiscitários, que, no limite, revelam-se fechados para as razões e os argumentos dos outros. Sobre isso, o grande sociólogo Max Weber dizia que os povos plebiscitários são imaturos para a democracia, na medida em que reduzem a complexidade da sociedade a opções binárias, dificultando assim a construção de consensos mínimos que permitam criar um campo comum de reconhecimento de problemas e de construção de soluções. Tal cenário empobrecedor, no nosso caso, tem se nutrido da baixa qualidade de uma classe política que se mostra cada vez mais insensível diante da movimentação da sociedade em busca de seus direitos e de seus interesses. Sem dúvida, esse tem sido um fator a mais para acentuar a tensão social e o processo de desqualificação das instituições, já que não são somente os “políticos profissionais” que passam a ser malvistos, mas a própria atividade política.


E como se pode enfrentar esse processo de dissídio entre a movimentação social e as instituições do país que está estimulando a intolerância?

 

MILTON LAHUERTA: As manifestações desencadeadas a partir de junho de 2013 mostraram de modo cabal que há um descontentamento crescente com relação à forma como a atividade política profissional vem sendo desenvolvida. Mas, acima de tudo, trouxeram à superfície o forte sentimento anti-política que se espraia pelo país e que exige mudanças urgentes. No entanto, qualquer mudança mais profunda que a sociedade brasileira venha a realizar será sempre lenta e exigirá grande capacidade de se fazer política. Por isso mesmo, há que se colocar no centro de nossas preocupações não apenas a necessidade de aperfeiçoamento das instituições para aproximá-las mais da movimentação da sociedade, mas também a urgência de investir fortemente na educação política da cidadania, em especial dos jovens, com o objetivo de se operar profundas transformações em nossa cultura política, tornando-a mais tolerante ao “outro” e preparando-a melhor para a complexidade que caracteriza o mundo contemporâneo.


Como as redes sociais podem influenciar e contribuir negativamente para essa intolerância?

 

MILTON LAHUERTA: As redes não são o espaço adequado para qualquer debate mais aprofundado, a não ser que haja muita abertura e muita consideração entre os interlocutores, senão rapidamente corre-se o risco de a conversa descambar para a acusação que desqualifica. Se essa afirmação vale para épocas de “normalidade” política, torna-se ainda mais contundente nos períodos eleitorais e/ou em momentos de grande instabilidade política, como este que estamos vivendo agora. Nessas situações, é difícil manter a maturidade e o equilíbrio necessários para se fazerem as ponderações adequadas acerca das razões que movem as opções em disputa; em especial depois da implantação definitiva entre nós da lógica schmittiana, que determina a política a partir da contraposição “amigo x inimigo”. Para o que tem contribuído amplamente a propagação “viral” por meio das redes sociais de toda sorte de polarizações, calúnias, factoides, mentiras, meias verdades etc. Com isso, a presença intensiva dos cidadãos (e principalmente dos jovens) nas redes sociais, em especial no Facebook, destilando ódio e agressividade, criou um ambiente propício para a demonização de todos que fazem parte, ou são lançados a sua revelia, do campo do “inimigo”, ao mesmo tempo em que se justifica quaisquer problemas ou malfeitos relativos aos que são identificados com o campo dos “amigos”. Por essas razões, as redes sociais não estão realizando o papel educativo que poderiam cumprir, na medida em que têm contribuído para acirrar a polarização artificial e maniqueísta entre direita e esquerda, tão bem expressa na estúpida contraposição “coxinhas” e “petralhas”.

Vocabulário da intolerância
  1. ETNOCENTRISMO: Crença na superioridade de uma cultura sobre as demais.
  2. FUNDAMENTALISMO ISLÂMICO: Crença religiosa em que o renascimento do islamismo na sua mais alta expressão de pureza só se dará quando ocorrerem a retomada dos costumes tradicionais próprios do século VII, estabelecidos por Maomé, e a vitória final sobre a cultura ocidental, considerada perigosa ao povo islâmico.
  3. HOMOFOBIA: Aversão a homossexuais ou ao homossexualismo.
  4. INTOLERÂNCIA POLÍTICA: Confronto de ideias (ou físico) entre eleitores e parlamentares de partidos distintos.
  5. PRECONCEITO SOCIAL: Crença na superioridade de uma classe em relação à outra.
  6. PRECONCEITO RELIGIOSO: Aversão a credos e religiões.
  7. RACISMO: Crença na superioridade inata de determinada raça humana e o direito de sua supremacia em detrimento das outras.
  8. XENOFOBIA: Aversão ou hostilidade a tudo que é estrangeiro.
  9. Fonte: Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa e Grande Dicionário Sacconi da Língua Portuguesa

Casos de intolerância
  1. ETNOCENTRISMO – Quando o Orkut era ainda uma das principais redes sociais, em 2010, comunidades foram criadas para hostilizar nordestinos, como uma que se intitulou “eu odeio nordestino”. Uma crítica à intensa migração de nordestinos, principalmente, para o Sudeste do Brasil.
  2. HOMOFOBIA – Em novembro de 2014, um casal gay foi espancado por um grupo na linha azul do metrô de São Paulo.
  3. PRECONCEITO SOCIAL (GENTRIFICAÇÃO) – Grosso modo é a revitalização de áreas degradadas de grandes cidades. O que provoca, quase sempre, a expulsão da população mais pobre desses lugares. Fenômeno que ocorreu em muitas cidades brasileiras durante a Copa do Mundo de 2014.
  4. FUNDAMENTALISMO ISLÂMICO – Há mais de cinco anos, um grupo radical que se autoproclama “Estado Islâmico” instituiu uma lei própria. Quem não a segue, é executado. Em 21 de maio de 2015, na cidade de Palmira, lar de antigas ruínas e classificada pela Unesco como Patrimônio da Humanidade, 25 soldados do exército sírio uniformizados foram executados. Estima-se que, em Palmira, o Estado Islâmico tenha matado mais de 200 pessoas.
  5. PRECONCEITO RELIGIOSO – No mês de julho de 2015, no subúrbio do Rio de Janeiro, a menina Kailane Campos, de 11 anos, foi apedrejada na cabeça e insultada por dois homens que seguravam bíblias. Com a família, ela acabara de sair de um culto de Candomblé.
  6. VIOLÊNCIA NO FUTEBOL – Em setembro de 2015, uma briga generalizada entre torcedores de Atlético e Cruzeiro, na região central de Belo Horizonte, deixou três pessoas baleadas antes do clássico válido pela 25ª rodada do Brasileirão.
  7. INTOLERÂNCIA POLÍTICA – Na madrugada da terça-feira, 22 de dezembro de 2015, o compositor e cantor Chico Buarque de Hollanda foi hostilizado por jovens contrários ao PT na saída do restaurante Sushi, localizado no bairro do Leblon, no Rio de Janeiro.
  8. RACISMO – Em abril de 2015, um menino negro de oito anos foi expulso da calçada de uma loja de uma famosa grife de roupas de São Paulo, localizada na rua Oscar Freire, região mais bem valorizada da capital paulista, já classificada como uma das oito ruas mais luxuosas do mundo. O pai da criança, o americano erradicado no Brasil Jonathan Duran fez um desabafo em sua conta do facebook: “Em certos lugares de São Paulo a pele de seu filho não pode ter a cor errada”.
  9. XENOFOBIA – No sábado 1º de agosto de 2015, um grupo de seis haitianos foi atingido por balas de chumbinho nas escadarias da Igreja Nossa Senhora da Paz, onde funciona a Missão Paz, que acolhe imigrantes em São Paulo.
  10. Fontes: Portal G1, Revista Exame, Portal Uol, Jornal do Brasil e Wikipédia.

Texto
Edson Cruz
Ilustrações
Quinho
Fotos
1Arquivo Pessoal
2Marcos Figueiredo
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