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Ciências Sociais De volta às infrações

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Maicon*, de 16 anos, largou o serviço comunitário por causa da ‘guerra do tráfico’ e está em liberdade assistida

Pesquisa inédita mostra que a taxa de reincidência entre
jovens infratores é de 30%, bem inferior à de adultos

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“Mais relevante do que reduzir a maioridade penal – se se quer efetivamente reduzir a participação do jovem no crime no Brasil – é aplicar a medida de internação de maneira mais efetiva”

Professor Luis Flávio Sapori, Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais

No cumprimento de sua terceira medida socioeducativa, a atual por porte ilegal de arma e outras duas por tráfico de drogas, Maicon* (nome fictício), de 16 anos, prestava serviço comunitário, fixado em seis meses, em escola na região onde reside, em Belo Horizonte, auxiliava o zelador, varria, catava folhas, capinava, trocava lâmpadas. Cursou até o 3º ano do ensino fundamental, ficou quatro anos sem estudar. Deixou o serviço comunitário por causa da “guerra do tráfico”, diz.

A primeira medida foi aplicada quando Maicon tinha 15 anos, em junho de 2018, a segunda um mês depois e a terceira cinco meses após a segunda. Em liberdade assistida, vai duas vezes por semana à Regional da Prefeitura assinar um termo e ouve conselhos dos responsáveis por acompanhá-lo. “A medida socioeducativa e a liberdade assistida têm que ser firmes mesmo, eles (os responsáveis por aplicar a medida) tentam me ajudar. As medidas são importantes, eles me dão muito conselho”. Sua mãe também acha a medida socioeducativa significativa: “Ajuda os jovens a terem um objetivo, a saírem da porcaria, da bagunça”. Maicon planeja trabalhar no que mais gosta, lava a jato.

Uma pesquisa inédita desenvolvida pelo Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da PUC Minas, encomendada pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG), por meio do Centro Integrado de Atendimento ao Adolescente Autor de Ato Infracional de Belo Horizonte (CIA-BH), defende que a medida de internação, combinada a um tempo mais longo de cumprimento dela, tem claro potencial de evitar que adolescentes infratores, como Maicon, se tornem criminosos adultos, especialmente aqueles com trajetória infracional mais irregular, que não constituíram carreiras criminais. A observação é do professor da PUC Minas Luis Flávio Sapori, do Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da Universidade, que coordenou a pesquisa juntamente com os professores André Junqueira Caetano e Roberta Fernandes Santos, do mesmo Programa.

O estudo contribui para jogar luzes sobre a eficácia de medidas socioeducativas para a recuperação de jovens infratores. A pesquisa A Reincidência Juvenil no Estado de Minas Gerais, divulgada em dezembro, chegou à conclusão de que a magnitude da reincidência de menores no âmbito do sistema socioeducativo, de 30,1%, é inferior à de adultos no sistema prisional, de 51,4%, no estado de Minas Gerais. Ou seja, as medidas socioeducativas restritivas de liberdade têm maior potencial de interromper trajetórias criminais do que a pena de prisão.

“Mais relevante do que reduzir a maioridade penal – se se quer efetivamente reduzir a participação do jovem no crime no Brasil – é aplicar a medida de internação de maneira mais efetiva”, defende o professor Sapori.

Desembargadora do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, a superintendente da Coordenadoria da Infância e da Juventude (Coinj), Valéria Rodrigues Queiroz, à época do estudo juíza da Vara da Infância e Adolescência, diz que a pesquisa por ela encomendada à PUC Minas mostra que, quanto menor a idade do adolescente, maior é o risco de ele se tornar um reincidente e quanto maior a idade desse adolescente, menor é essa probabilidade. “Foi positivo o estudo mostrar que a causa da criminalidade no Brasil não vem dos jovens, que eles não precisam ser encarcerados para mudarem. Eles precisam, sim, de que sejam implementadas políticas públicas de saúde, educação. Há ausência de políticas públicas necessárias para esses adolescentes”, enfatiza, lembrando que é mais fácil recuperar um adolescente que está em formação de caráter do que um adulto. “Esse estudo mostra a necessidade de investirmos em medidas socioeducativas eficazes, não só pedagógicas, mas de inserção profissional, ou seja, oportunizando a esses adolescentes cursos na área de educação, formação profissional, atendimentos psicológico e pedagógico, para que eles busquem alternativas que não sejam a prática de ato infracional”.

Déficit de vagas

O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) prevê, em seu artigo 104, que o menor de 18 anos é inimputável, porém o ato infracional é passível de aplicação de medidas socioeducativas, como advertência, obrigação de reparar o dano, prestação de serviços à comunidade, liberdade assistida, internação, entre outras.

Mas muitos brasileiros se perguntam: como pode a medida funcionar se há muitos jovens cometendo crime no Brasil? Argumenta o professor Flávio Sapori: “É porque há falta de vagas no sistema socioeducativo hoje em todos os estados. O número de adolescentes que comete roubos, furtos, tráfico de drogas e homicídios, que a polícia apreende no dia a dia, é muito maior que o número de vagas disponíveis para aplicar as medidas punitivas previstas em lei. Então, muitas vezes esses adolescentes são mandados para cumprimento dessas medidas em meio aberto (no âmbito da assistência social) ou não são punidos. É por isso que as pessoas percebem no dia a dia que a polícia lida com os mesmos, que estão sempre cometendo muitas infrações. Onde está realmente o problema? Não são devidamente punidos”.

Dos 435 indivíduos acompanhados no estudo, entre janeiro de 2013 e dezembro de 2017, 131 reincidiram no período analisado contra 304 que não o fizeram, configurando uma taxa de reincidência juvenil para o estado de Minas Gerais de 30,1%. “Se a medida de internação é aplicada, reduz a reincidência mais até do que a prisão adulta. Se ele vai para o sistema prisional adulto, a chance de ele se tornar reincidente é maior do que cumprir a medida de internação em um centro para menores”, pontua o professor Sapori.

O universo da pesquisa foi composto por todos os adolescentes internos das unidades socioeducativas em todo o território do estado de Minas Gerais que terminaram o cumprimento de medida socioeducativa no ano de 2013. Foram incluídos os adolescentes egressos que cumpriram dois tipos de medida socioeducativa, a semiliberdade e a internação. Na pesquisa, o número de adolescentes egressos no ano de 2013 totalizou 435 adolescentes, sendo 393 egressos que cumpriram medida de internação e 42 egressos que cumpriram medida de semiliberdade.

 

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Joana*, de 17 anos, já cometeu furto a pedestre e cumpre mais uma medida socioeducativa devido à receptação de carro roubado

Eficácia das medidas

As medidas socioeducativas são eficazes? “A resposta é sim, elas precisam ser melhoradas. O estudo aponta onde está o problema da reincidência: são naqueles casos de má aplicabilidade da medida. Onde a medida é aplicada de forma correta pelo profissional, esse adolescente não volta a reincidir. O contrário se vê quando ela não é bem executada. Então o estudo mostra que nós temos medidas sociais eficazes, mas elas precisam ser melhor aplicadas em determinados casos”, defende a desembargadora Valéria Queiroz. “A internação não é a solução, nós não precisamos internar, pelo número de reincidentes. Nós precisamos, sim, é mudar a execução, é cumprir o que está na lei, cumprir o plano individual de atendimento do adolescente que se encontra cumprindo medida socioeducativa. Precisamos mudar as medidas socioeducativas”.

Joana* (nome fictício), de 17 anos, já cometeu furto a pedestre, pegou uma bolsa que “só tinha R$0,05”. Cumpre mais uma medida socioeducativa devido à receptação de carro roubado. “Foi uma boa medida (socioeducativa), a pessoa me compreendeu, me explicou, me orientou, me ajudou a ter mais raciocínio, mais juízo”, diz.

Para Sapori, o adolescente infrator não pode ser tratado de uma maneira homogênea. “Ele não tem uma característica única, ela não é igual em si. A trajetória do adolescente tem formatos distintos”, pontua. O pesquisador esclarece que parecem ser dois os tipos básicos de adolescentes infratores, meninos ou meninas, não importa o gênero: um que começa muito cedo na vida do crime, ainda no final da infância, entre 10 e 12 anos, principalmente usando drogas ilícitas, como a cocaína, e começa a cometer infrações, furtos, roubos, começa a participar do tráfico de drogas. Esse tipo de adolescente tende a ter uma carreira criminosa consolidada, segundo Sapori. “Esse é um perfil com o qual não sabemos lidar. É ele que geralmente se torna criminoso na fase adulta. Tudo o que é feito para ele durante o atendimento socioeducativo, as oficinas culturais, esportivas, profissionalização, nada disso tem funcionado bem para ele. A metodologia que temos empregado no Brasil para lidar com ele não tem sido adequada, tem sido deficiente. É ele que tende a reincidir”, explica o ex-secretário adjunto de Defesa Social de Minas Gerais.

A pesquisa trabalhou o período de cinco anos contados a partir de 2013, ano de corte do universo de egressos. A reincidência juvenil foi considerada, portanto, quando houve a identificação de pelo menos um novo registro de ato infracional ou de crime feito pela Polícia Civil entre janeiro de 2013 e dezembro de 2017.

Por outro lado, o adolescente que começa a cometer infrações um pouco mais tarde, aos 16, 17 anos, seja no furto, roubo, tráfico, em algumas circunstâncias pode até cometer um assassinato, não é contumaz, a infração é algo aleatória na vida dele, como explica o professor: “Ele é levado a isso por influência dos pares, dos amigos, por um desejo incontido de consumo, de adquirir bens, por isso vai participar do tráfico de drogas, vender drogas, mas não é contumaz no crime. O crime não se tornou para ele meio de vida”.

É para esse adolescente de 16, 17 anos, que a pesquisa revelou que a medida de internação funciona. “Ela interrompe a trajetória infracional, diminui a probabilidade de ele voltar ao crime se a medida socioeducativa for cumprida. Se a medida socioeducativa de internação for bem aplicada e num tempo razoável, de forma que o adolescente perceba que ele tem que ser responsável por aquilo que fez, ele é diassudido, ele percebe um custo, a medida funciona, é útil”, descreve o professor Sapori.

É preciso, continua ele, uma política específica de acompanhamento desse adolescente contumaz no crime. “É esse que precisa ter um acompanhamento especial, principalmente depois que ele termina de cumprir a medida socioeducativa. É preciso um acompanhamento, oferecer um tratamento psicológico, dar alternativas de escolarização, de geração de renda, oferecer ajuda eventualmente ao pai, à mãe, à avó, aos irmãos que estão desestruturados. Só a internação não basta, só a punição não basta. Esse tem que ter uma política própria que não existe hoje no Brasil”, afirma o professor Sapori.

 

Outras conclusões da pesquisa

  1. 1. Quanto maior a idade do adolescente quando do término do cumprimento da medida socioeducativa, menor a chance de reincidência. A cada ano adicional na idade do adolescente a chance de reincidência diminui em 10%.

  2. 2. O tipo de convivência familiar influencia a chance de reincidência na medida em que adolescentes com trajetória de rua antes do cumprimento da medida socioeducativa têm chance 32% maior de reincidir do que adolescentes com convivência de família de origem.

  3. 3. Constata-se que o adolescente que cumpriu medida socioeducativa por furto apresenta chance de reincidir bem superior, 176% maior do que a chance dos adolescentes que cumpriram medida socioeducativa por tráfico de drogas. O ato infracional Porte Ilegal de Arma de Fogo também apresenta chance de reincidência superior à categoria tráfico de drogas, cerca de 40%.

  4. 4. Os adolescentes que cumpriram medida socioeducativa de internação tendem a reincidir menos do que os adolescentes que cumpriram medida socioeducativa de semiliberdade. A chance de reincidência dos que cumpriram medida de internação é 36% menor comparativamente à semiliberdade.

  5. 5. A variável de impacto mais relevante na chance de reincidência foi Tempo da medida socioeducativa, categorizada de acordo com o número de dias cumpridos pelo adolescente infrator quando da respectiva medida socioeducativa determinada pela justiça juvenil. Constatou-se que a chance de reincidência diminui à medida que aumenta o número de dias cumpridos pelo adolescente infrator.

  6. 6. A trajetória infracional precoce do adolescente constitui fator dos mais impactantes na reincidência, de modo que a existência de registro anterior de ato infracional registrado pela justiça juvenil aumenta a chance da reincidência.

  7. 7. O consumo de drogas ilícitas pelo adolescente em período anterior ao cumprimento da medida socioeducativa aumenta sua chance de reincidência.

  8. Na pesquisa, o número de adolescentes egressos no ano de 2013 totalizou 435. Sendo 393 egressos que cumpriram medida de internação e 42 egressos que cumpriram medida de semiliberdade.

Texto
Leandro Felicíssimo
Fotos
Raphael Calixto
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