Ciências Sociais I love my white
Estudo aponta posição estratégica das mulheres no tráfico de drogas, amparada pela ideia de que não são propensas ao crime
Ela se sentia protegida pelo marido até ele ser preso, em 2007, por comandar uma rede de tráfico de drogas que refinava a pasta-base e a transformava em cem quilos de cocaína, em média, vendidos mensalmente na Região Metropolitana de Belo Horizonte. Naquela época, Isabela (nome fictício) entregava a droga e recebia dinheiro dos clientes, faturamento que já chegou a R$ 100 mil em um mês de dezembro. Mas ela não conhecia outras pessoas que trabalhavam para o marido, até porque ele nunca as levava em casa, com exceção dos dois irmãos dela, que também integravam a rede.
Após a prisão, o marido pediu a ela para comandar a rede, substituindo-o. Na verdade, diz Isabela sem titubear, aceitou pelo volume de dinheiro que a rede movimentava. “Tive a chance de parar, mas não quis mesmo. Acabei parando aqui na cadeia”, reconhece ela, atualmente com 39 anos e quatro filhos. Isabela cumpre pena de 14 anos de reclusão, por tráfico de drogas e associação ao tráfico (artigos 33 e 35 da Lei 11.343/2006), numa penitenciária para mulheres na RMBH.
“A desigualdade social se reflete na diferença entre esses dois tipos de redes: na rede de bocas, a segurança pública atua na repressão, enquanto na rede de empreendedores ela foca na segurança”
Professora Lúcia Lamounier SenaAs posições assumidas por Isabela na rede de tráfico de drogas são exemplos que se encaixam no conceito de “funcionalidade moral”, desenvolvido pela professora Lúcia Lamounier Sena na tese de doutorado intitulada I Love my White: mulheres no registro do tráfico ilegal de drogas, defendida recentemente no Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da PUC Minas. O estudo, orientado pela professora Alessandra Sampaio Chacham, é caracterizado pela busca do entendimento dos sentidos da diferença de gênero em uma dinâmica criminal. Esses sentidos foram tematizados através dos registros de participação de mulheres nas redes de comercialização de drogas ilegais. No estudo, a professora Lúcia Lamounier Sena questiona a ideia de que as mulheres são, por natureza, não propensas à criminalidade e o fato frequente de a mulher ser representada como oprimida ou sempre ocupando lugares de menor importância nos mercados ilegais das drogas. Nesses mercados, os homens são sempre representados como protagonistas, grandes bandidos ou “líderes do tráfico”. No caso das mulheres, a participação é dada como sendo decorrente de envolvimento amoroso, são pensadas como pessoas submissas, ancoradas em algum líder masculino ou, na condição de parceiras de seus homens, podem até mesmo ser cúmplices em transgressões mais violentas.
A “funcionalidade moral” se expressa através do gênero pela sua adequação (prática e simbólica) para o desempenho de uma atividade, observa a pesquisadora. No caso das mulheres, sua adequação para determinadas atividades é operacionalizada pela crença de elas serem portadoras do bem de maior valor de troca nos mercados do varejo das drogas ilegais: a confiança. A mulher pode, ela mesma, se abster de determinada atividade no tráfico de drogas ou se dizer apropriada a alguma função específica, pelo fato de ser mulher, explica a professora, visando à própria eficiência das redes de comercialização de drogas ilegais. A figura da “fiel” ora é a esposa, ora é a amante de um traficante, alterna ocultamento e visibilidade da sua atuação. É uma posição de grande destaque nesses mercados, destaca a pesquisadora.
Dados citados pela autora no estudo mostram o crescente encarceramento de homens e mulheres no Brasil, de forma especial por tráfico de drogas. De acordo com o Sistema Integrado de Informações Penitenciárias (Infopen), do Ministério da Justiça, no período de 2006 a 2011 houve um crescimento de 192,6% na taxa de encarceramento de mulheres por tráfico de drogas e de 161% de homens, pelo mesmo crime. Em 2006, quando entrou em vigor a Lei 11.343/2006, o total de mulheres encarceradas no País, por diferentes crimes, representava 25,5% do total da população carcerária (que era de 383 mil pessoas, entre homens e mulheres), número que chegou a 49,7% em 2011, ano em que o número de presos homens e mulheres no Brasil, por diferentes crimes, chegou a 514 mil. Nesse período, houve um aumento de 50,5% na taxa de crescimento populacional carcerária feminina. “Não necessariamente o crime de tráfico de drogas é o mais cometido no Brasil, mas sem dúvida é o que tem levado a mais encarceramento”, pontua a pesquisadora.
Ser mulher, prossegue Lúcia Lamounier, está relacionado a determinados enquadramentos nos crimes previstos no Código Penal. Em relação à Lei 11.343/2006, as mulheres estão geralmente enquadradas no crime de associação ao tráfico de drogas, previsto no artigo 35, e não à comercialização propriamente dita, crime previsto no artigo 33. “O fato de ser mulher nessas redes amplia em 254% a chance de ser enquadrada atuando em locais públicos, como em festas, penitenciárias (como “mulas”), clubes e bares, e em 160% como associação ao tráfico, sendo poucas enquadradas em crimes violentos, tais como o homicídio”. Mas esses enquadramentos estão relacionados a uma dimensão de natureza da mulher ou do homem, constata a pesquisadora.
Rede de bocas e rede de empreendedores autônomos
No estudo, a professora, a partir de pesquisa anterior para capítulo do livro Crack: um desafio social, organizado pelos professores da PUC Minas Luis Flávio Sapori e Regina Medeiros (Editora PUC Minas, 2010), descreve a diferenciação entre rede de bocas – que possuem ponto físico de comercialização, caracterizadas por tráfico de drogas em vilas, favelas e periferias e que possuem ponto físico para a comercialização – e a rede de empreendedores autônomos, caracterizadas no estudo como sendo constituída por integrantes da classe média. A comercialização é realizada de forma predominante entre as redes de amigos e conhecidos e na qual a própria pessoa é a referência, não possuindo um ponto físico. “A desigualdade social se reflete na diferença entre esses dois tipos de redes, por exemplo, na população carcerária, de acordo com o estudo: negros, pardos e pobres pertencem, principalmente, a redes de bocas”.
Para o desenvolvimento do estudo, a professora entrevistou mulheres encarceradas, com idade entre 19 e 52 anos; homens e mulheres não encarcerados, ainda em atuação nos dois tipos de rede; além de agentes de segurança pública, assistentes sociais, psicólogos, advogados, defensores públicos, entre outros.
‘Comandava’ o Sul de Minas
É com firmeza que Luísa (também nome fictício), de 29 anos, diz que ‘comandava’ o Sul de Minas, traficando maconha e cocaína para cerca de 20 cidades daquela região. Condenada a 13 anos de reclusão, na mesma penitenciária para mulheres na RMBH, ela diz que os membros da quadrilha, como ela mesma define o grupo, faturavam até R$30 mil por dia. Não atuavam em ponto fixo, vendas somente por telefone, para pessoas de todas as classes sociais. Usuária de drogas desde os 13 anos, Luísa se prostituía desde os 18. O esposo, que não era traficante, depois de cinco anos de relacionamento, como ela mesma conta, foi “empurrado” por ela para o tráfico, tendo sido presos no mesmo dia. Continuam casados mesmo encarcerados, têm uma filha de oito anos, que está com a avó paterna. Ela e o marido conversam por carta e, de três em três meses, ela fala com a filha por telefone. Faz três anos que Luísa não recebe qualquer visita, a família não a procura nem escreve, lamenta. “Apesar de todo o sofrimento, esta cadeia foi um presente que Deus me deu. Aqui fiz cursos de joalheira, pintura, de gráfica e me formei no ensino básico. Aqui conheci Deus, me batizei, aprendi a conversar e a respeitar as pessoas, a dar valor ao que jogava fora”, enumera. “E eu me sinto mais livre que várias pessoas que estão lá fora. Quando sair, não quero mexer mais com drogas”. Por carta, o marido prometeu a ela que vai largar o tráfico. “Se ele não fizer isso, permanecerá sozinho, já fiz essa escolha e impus isso a ele para continuarmos juntos”, diz Luísa.