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Artigo
Crise de identidade aos 70

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A ONU enfrenta sérios desafios e pode-se mesmo dizer que atravessa uma crise de legitimidade

”Em seu aniversário de 70 anos, é essencial repensarmos como superar essas dificuldades e lutar pelo seu fortalecimento. Afinal de contas, como disse Lacordaire, entre fortes e fracos a liberdade oprime e o direito liberta”

Jorge Mascarenhas Lasmar
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Este ano, a Organização das Nações Unidas (ONU) completa 70 anos. Idealizada ainda durante a Segunda Guerra Mundial, a ONU é uma organização internacional de cunho universal que foi concebida para ser um foro de debate das grandes questões mundiais e um espaço para se promover a paz e a segurança internacionais. A estrutura e funcionamento atuais foram desenhados durante a Conferência de São Francisco em 1945, na qual foi aprovado o seu estatuto: a Carta das Nações Unidas. A carta, instrumento que prevê as regras gerais de funcionamento da organização, foi assinada pelos representantes de 50 países em 26 de junho de 1945. Com as assinaturas, a ONU passou a existir oficialmente em 24 de outubro do mesmo ano. Atualmente, a ONU possui 193 Estados membros.

Em termos da sua estrutura, a ONU é composta por seis órgãos principais que desempenham atividades de administração, deliberação e decisão. O secretariado é o principal órgão administrativo. Chefiado pelo secretário geral, o secretariado é o órgão executivo e administrativo da organização que atua no auxílio das atividades dos demais órgãos e administra as políticas e programas por eles elaboradas. A Assembleia Geral, o Conselho Econômico e Social e o Conselho de Tutela são os foros deliberativos. A Assembleia Geral é o órgão plenário da ONU no qual todos os Estados Membros participam definindo principalmente sobre o orçamento e as questões relativas à paz e segurança internacionais. O Conselho Econômico e Social conta com a participação de ONGs e é o órgão responsável pela coordenação, desenvolvimento e fomento das atividades de cunho econômico, social e cultural da organização. Já o Conselho de Tutela não mais exerce atividades. Esse órgão era responsável pela administração dos territórios sem governabilidade própria (colônias), mas teve atividades suspensas em 1994 quando Palau, último território tutelado, se tornou independente. Já o Conselho de Segurança e a Corte Internacional de Justiça (CIJ) são os dois órgãos decisórios da ONU. A CIJ, com sede em Haia, Holanda, funciona como a principal jurisdição da ONU julgando casos contenciosos entre os Estados ou elaborando pareceres consultivos para órgãos e agências especializadas. Finalmente, o Conselho de Segurança (CS) é composto por 15 Estados Membros e tem como competência decidir assuntos tais como a adoção de medidas envolvendo a paz e segurança internacionais, intervenções em situações de crises políticas e militares, admissão e expulsão de membros, adoção de sanções econômicas, a atuação na solução de conflitos internacionais etc.

A grande importância do CS (e a fonte do desejo brasileiro de obter uma cadeira permanente neste órgão) se dá em virtude do chamado sistema de segurança coletiva. Esse sistema foi desenhado para superar a falha da predecessora da ONU, a Liga das Nações, em se evitar grandes conflitos mundiais. Segundo a carta, está proibido todo e qualquer uso da força armada nas relações internacionais, exceto em duas exceções. A primeira, se refere aos casos de legítima defesa. A segunda são aquelas ocasiões em que o próprio CS – em teoria o representante da comunidade internacional – autoriza o uso da força. Exemplos dessa autorização incluem embargos econômicos, as chamadas missões de paz ou outras decisões obrigatórias para todos os Estados Membros.

Assim, o objetivo principal da ONU é manter a paz e segurança internacionais, mas, através de suas agências especializadas, programas e fundos, também desenvolve relações amistosas entre os países, melhora as condições de vida e respeito aos direitos humanos e harmoniza as ações dos Estados. Desta forma, seu escopo de atuação também inclui a sua atuação em questões fundamentais tais como refugiados, terrorismo, desarmamento, desenvolvimento, saúde, alimentação, meio ambiente, direitos humanos, igualdade etc.

Contudo, as regras de funcionamento da ONU ainda hoje refletem a realidade da comunidade internacional em 1945. A estrutura e dinâmica interna apresentam sérios entraves ao seu próprio funcionamento e não eliminaram, apesar da adoção do multilateralismo estatal e da consagração de novos princípios e valores, a ordem inter-estatal. Concebida de modo a não criar uma autoridade acima dos estados, a ONU reflete a concepção política de ordem dos vencedores da Segunda Guerra. Exemplos disso são a composição desigual do CS em que cinco Estados (EUA, Rússia, China, França e Reino Unido) têm o poder de veto sobre suas decisões e os importantes casos em que disputas políticas entre os países levaram à paralisia do Conselho de Segurança, tais como o caso do genocídio em Ruanda ou mais recentemente da Síria.

Assim, a ONU enfrenta sérios desafios e pode-se mesmo dizer que atravessa uma crise de legitimidade. É fato que em diversas ocasiões interesses políticos individuais impediram uma atuação mais firme e decisiva da ONU, mas não podemos nos esquecer de que suas ações e luta pela efetiva aplicação do direito internacional em diversas ocasiões salvaram milhares de vidas. Em seu aniversário de 70 anos, é essencial repensarmos como superar essas dificuldades e lutar pelo seu fortalecimento. Afinal de contas, como disse Lacordaire, entre fortes e fracos a liberdade oprime e o direito liberta.

Texto
Jorge Mascarenhas Lasmar
Chefe do Departamento de Relações Internacionais e doutor em Relações Internacionais pela London School of Economics and Political Science (LSE), da Inglaterra
Ilustração
Negro
Foto
Marcos Figueiredo
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