Artigo
500 anos da reforma luterana
Neste ano ocorrem inúmeras atividades acadêmicas e eclesiásticas para celebrar e estudar esse evento
Dificilmente se poderá minimizar a importância da Reforma Protestante, movimento iniciado pelo alemão Martinho Lutero (1483-1546), que fora monge agostiniano, e, mesmo que não fosse sua intenção, tornou-se um dos principais líderes cristãos da história. Ao contrário de antigos mitos populares, que vez ou outra ainda são divulgados, mas que não resistem a um exame histórico sério, Lutero não dividiu a cristandade nem iniciou seu movimento porque queria se casar. Bem antes do surgimento do protestantismo no ano 1054 para ser mais exato , os cristianismos ocidental latino e oriental grego já haviam se separado. Lutero não dividiu a Igreja ocidental. Muito pelo contrário: ele foi literalmente expulso, com a excomunhão que em 1521 recebeu de Leão X, o papa da época. E o que motivou Lutero não foi outra coisa a não ser o desejo de ver o cristianismo de seu tempo renovado, revitalizado, que recuperasse a força e a dinâmica originais dos primeiros seguidores de Jesus. Vale lembrar que essa busca por revitalização reforma do cristianismo ocorrera antes por líderes e pensadores cristãos conhecidos como Pré-reformadores. Dentre estes podem ser citados o inglês John Wycliffe (1320-1384), que recebeu o epíteto de Estrela Dalva da Reforma, o checo Jan Hus (ou Huss, 1369-1415), e, antes ainda, o francês Pierre Valdès (1140-1218), mais conhecido como Pietro (ou Pedro) Valdo, líder da Igreja Valdense, tida como uma Igreja Protestante antes do surgimento do protestantismo. O próprio movimento iniciado por Giovanni de Pietro di Bernardone, mundialmente conhecido como Francisco de Assis (1182-1226), outra coisa não foi a não ser uma busca de reforma na igreja de seu tempo. O movimento de Francisco só não sofreu perseguição como os demais por conta da habilidade política de Inocêncio III, o papa da época, que percebeu que seria mais interessante ter aquele estranho pregador e seus seguidores debaixo da autoridade da Igreja que fora dela.
O que diferencia o movimento de Lutero é que o alemão tocou não apenas em questões morais e éticas, como os mencionados antecessores fizeram, mas também em questões doutrinárias: a doutrina da justificação pela fé, a espinha dorsal do esquema teológico protestante, constitui-se em novidade teórica com amplas implicações sociais. Ao anunciar a justificação pela fé, Lutero minimiza e relativiza a importância da Igreja como agência de mediação institucional entre Deus e os homens. O indivíduo, por graça e fé, recebe a justificação da parte de Deus, sem precisar pagar por isso. A Igreja da época vendia as indulgências, documento que diziam garantiria o perdão dos pecados, até mesmo dos falecidos. A briga de Lutero acontece a partir de sua descoberta do texto de Romanos 1.16-17: Pois não me envergonho do evangelho, porque é o poder de Deus para a salvação de todo aquele que crê, primeiro do judeu e também do grego; visto que a justiça de Deus se revela no evangelho, de fé em fé, como está escrito: O justo viverá por fé. O ser humano é aceito e perdoado por Deus não por conta de uma palavra dita ou documento emitido pela autoridade eclesiástica, mas por graça e fé. As famosas 95 Teses vão argumentar, com uso de textos bíblicos e fontes cristãs patrísticas e medievais, contra a comercialização e a mercantilização daquilo que os sociólogos da religião em nossos dias chamam de bens simbólicos da salvação. A Tese 62 é um bom resumo da então incipiente teologia protestante que Lutero começava a formular: O verdadeiro tesouro da Igreja é o santíssimo Evangelho da glória e da graça de Deus. Em outras palavras: o tesouro da Igreja não está nas riquezas que esta acumula, mas no dom gratuito que Deus concede.
A teologia de Lutero pode ser sintetizada nas chamadas Bandeiras da Reforma, conhecidas como “Solas” (da palavra latina Sola, só, somente, unicamente), que são quatro, a saber: Só a graça (Sola gratia), Só a fé (Sola fide), Só a Escritura (Sola Scriptura) e Só Cristo (Solo Christo ou Solus Christus). As bandeiras da Reforma têm foco soteriológico, isto é, discutem a experiência da salvação humana. Esta acontece só por meio de Cristo, único mediador, é ensinada só pelas Escrituras (o que retira a importância da Tradição e do Magistério), e é recebida só por graça e fé. Diante desse quadro, aquele/a que é alcançado/a por esta graça só tem uma resposta a dar: Soli Deo gloria, Glória somente a Deus. Esta resposta doxológica é muito elucidativa do ethos do protestantismo: Lutero era músico e deu à música e ao canto grande importância. Via de consequência, a Reforma Protestante teve grandes implicações comunitárias, litúrgicas e pastorais. Conclui-se que os princípios propostos pelo protestantismo têm implicações não apenas no campo da história das ideias. Muito mais que isso, têm implicações sociais muito concretas. Tome-se como exemplo o Sola Scriptura: quando a vida de Lutero corria risco, ele foi mantido por cerca de dez meses (entre 1521 e 1522) em segredo no Castelo Wartburg, nas imediações de Eisenach, região da Turíngia, a mando do Príncipe Eleitor Frederico, o Sábio. Para sua proteção, Lutero assume a identidade de Junker Jörg, o Cavaleiro Jorge. Nesse tempo, traduz o Novo Testamento do grego para o alemão. A tradução de Lutero tornou-se a base para o alemão padrão até os nossos dias. Além disso, a ênfase no Sola Scriptura teve implicação direta na redução dos então muito altos índices de analfabetismo na Europa. O protestantismo incentivou e incentiva a leitura bíblica (o protestantismo clássico pelo menos). Para tanto, evidentemente há que primeiro aprender a ler.
É importante que neste ano de 2017 seja feito um resgate da história da Reforma, não apenas de maneira romântica, idealizada, mas crítica e construtiva. É importante que a abordagem ao estudo da Reforma seja feita não em perspectiva polêmica ou apologética, mas de convergência ecumênica. Assim as comemorações dos 500 anos farão sentido, e não serão apenas glorificações de acontecimentos de meio milênio atrás.