Qualidade do sono no cárcere

Sono de mulheres privadas de liberdade na Apac Feminina, em Belo Horizonte, é objeto de estudo
A recuperanda Norma de Oliveira da Silva: ao entrar na Apac, há quase dois anos, as medicações foram reduzidas, mas o problema de má qualidade do sono ainda persiste | Fotos: Raphael Calixto

As mulheres encarceradas estão mais vulneráveis ao adoecimento em comparação com os homens privados de liberdade. Aspectos biológicos e características emocionais associadas ao sexo feminino contribuem para um maior comprometimento da saúde mental dessa população, de acordo com informações publicadas no artigo Levantamento dos Distúrbios do Sono em Recuperandas da Apac BH: integração ensino, pesquisa e extensão no projeto de extensão Elas, da PUC Minas. Na Apac (Associação de Proteção e Assistência aos Condenados) Feminina de Belo Horizonte, instituição que busca promover a aplicação da pena de forma humanizada, 42% das recuperandas apresentam algum tipo de distúrbio do sono, aponta pesquisa realizada pelas discentes extensionistas e pesquisadores voluntários do FIP/ProPPG PUC Minas no projeto de extensão Elas. Este integra o programa Apenas Humanos, que desenvolve ações interdisciplinares na Apac. Apesar de não ser considerado um percentual alto, mas representando cerca de metade da população estudada, como avalia a professora do Curso de Fisioterapia Patrícia Dayrell Neiva, coordenadora adjunta do projeto e orientadora da pesquisa, o dado chama a atenção para o desenvolvimento de ações multidisciplinares que busquem uma melhor qualidade de vida para as recuperandas.

“O estilo de vida é considerado como um ponto primordial para a qualidade do sono”, afirma a professora. Ela explica que todo o trabalho de promoção da saúde decorrente das ações do Elas, que abrange discentes e docentes de oito cursos de graduação da Universidade – Educação Física, Ciências Biológicas, Psicologia, Enfermagem, Filosofia, Letras, Direito e Fisioterapia, este último, inclusive, vem incentivando a prática regular e monitorada de atividades físicas. Outro fator relacionado ao estilo de vida que impacta negativamente na qualidade do sono é o tabagismo. Realizado com 60 recuperandas com idade entre 21 e 52 anos, de março a setembro de 2021, o estudo indicou que 40% delas são fumantes.

“Realizamos três oficinas, conduzidas pelos extensionistas e discentes do Curso de Fisioterapia em duas disciplinas com práticas curriculares de extensão abordando a necessidade de higiene do sono e cessação de tabagismo. Esses são enfoques que devem ser mantidos no nosso plano de atividades considerando a relevância e a rotatividade das recuperandas”, observa Dayrell. A demanda pela pesquisa partiu das próprias mulheres, que durante atividades desenvolvidas pelo projeto se queixaram de distúrbios relacionados ao sono. De acordo com o artigo, quando esse desequilíbrio envolve outros fatores, como a privação de liberdade, pode ocorrer o desenvolvimento de transtorno do sono-vigília e estar acompanhado de depressão, ansiedade, alterações cognitivas, entre outros.

“Ao ser inserido no sistema prisional, um ambiente desconhecido, o indivíduo necessita adaptar-se a um ‘novo mundo’ para conseguir manter-se nele, independentemente de qual for a condição de saúde. Na prisão, as condições de confinamento são determinantes para o processo saúde-doença”, explica a professora Patrícia Dayrell Neiva. Segundo ela, o sistema carcerário brasileiro convive com um “quadro preocupante” em relação à saúde, com condições precárias que tornam o ambiente insalubre, de alto risco e favorável à proliferação de doenças. A pesquisa partiu da hipótese de que na transição do sistema prisional comum para a Apac BH seriam encontrados os mesmos hábitos de vida “muito ruins”. Entre esses hábitos, ela cita má alimentação, inatividade física, uso excessivo de medicações, condições que, quando associadas a comorbidades, contribuem para alterações no ciclo cicardiano, que regula as principais atividades e processos biológicos.

Para as mensurações, foram utilizados instrumentos da prática do profissional de saúde para avaliar dados vitais, saturação periférica de oxigênio, circunferência abdominal e pescoço e índice de massa corpórea aliados a escalas para medir a qualidade do sono e dependência em nicotina. A pesquisa possibilitou um melhor conhecimento sobre o perfil das recuperandas, apresentando dados relativos à escolaridade, estado civil e ocupação que exerciam antes de ingressar no sistema prisional, entre outros.

Todo o processo contou com a participação de duas extensionistas e pesquisadoras voluntárias, que auxiliaram na aplicação dos questionários e coleta dos dados.

A estudante Eduarda Silva Mendes Santos Ângelo, do Curso de Fisioterapia, do 10º período, afirma que participou de todo o processo, desde a coleta de dados até as visitas técnicas presenciais. Extensionista do projeto Elas durante um ano e meio, ela conta que auxiliou na elaboração de artigo e em ações de promoção da saúde junto às recuperandas. O trabalho foi realizado juntamente com a colega Gabriela Pâmela Fausta Vieira. Eduarda considerou a experiência “valiosa e de grande impacto pessoal”. “A junção entre pesquisa e extensão pôde me proporcionar um grande crescimento pessoal e profissional, envolvendo práticas no âmbito cultural, humanizado e com ganho de habilidades que antes eram por mim desconhecidas”, diz.

As estudantes Gabriela Pâmela Fausta Vieira e Eduarda Mendes Santos, do Curso de Fisioterapia, participaram de todo o processo da pesquisa

Obesidade e excesso de medicamentos

Uma das participantes do estudo é a recuperanda Norma de Oliveira da Silva, 48 anos. Obesa mórbida, ela toma mais de 15 medicações diariamente, para tratamento de hipertensão arterial sistêmica, ansiedade, depressão, trombose, entre outros. O problema para dormir, afirma, foi agravado quando ingressou no sistema prisional comum. “Numa penitenciária você não dorme, é aquele sono com um olho aberto e o outro fechado, porque você nunca sabe o que vai acontecer. Vivia sob tensão”, afirma. Ao entrar na Apac, há quase dois anos, as medicações foram reduzidas, mas o problema ainda persiste. De acordo com ela, um abuso sexual sofrido dos 5 aos 12 anos pelo padrasto ainda “atrapalha bastante” seu sono. “É muito ruim, é horrível, porque eu lembro todo dia”, diz a recuperanda, que está sob acompanhamento psicológico conduzido pelas extensionistas do Curso de Psicologia, coordenados pelos professores Maria Carmem Schettino e Hélio Miranda. Ela conta que recebeu orientações para se manter mais ativa e adequar a alimentação em alguns períodos do dia. No entanto, por conta da recente trombose na perna, ela interrompeu o exercício. “Acho que para ser feliz eu preciso estar com a minha saúde boa”, analisa.

Para o encarregado administrativo Ernandes Silva, que esteve nesse cargo na Apac Feminina até abril deste ano e acompanhou todo o trabalho, o estudo foi visto com “bons olhos” à época porque poderia auxiliar a Associação a traçar planos e melhorar a condição de vida das recuperandas. Sobre o percentual de 42% das recuperandas apresentarem algum tipo de distúrbio do sono, ele considera o dado “elevadíssimo” e credita isso ao fato de elas serem oriundas do sistema prisional comum, onde há poucas atividades físicas, laborais e educacionais. Ele afirma que o estudo contribuiu para que as ações desenvolvidas na Apac tivessem mais valor e credibilidade junto às recuperandas. “Uma noite de sono boa para as recuperandas significa que no outro dia ela vai estar mais disposta a entender melhor a metodologia e se empenhar muito mais na sua recuperação. Tudo isso comunga de um final que é sair da Apac recuperada, ressocializada e pronta para enfrentar os desafios da vida cotidiana”, defende o gestor, que hoje está no cargo de gerente geral da Apac de Betim.

O artigo sobre a pesquisa foi publicado no e-book Perspectivas: estudo interdisciplinar sobre o sistema prisional, disponível para download gratuito na internet. Cenário para desenvolvimento da pesquisa e ações da extensão universitária, o projeto Elas busca contribuir para a efetivação dos direitos da mulher privada de liberdade, promovendo ações que levem em consideração os processos de humanização e as especificidades do gênero, com vistas à preparação para o retorno ao convívio social, em consonância com o método Apac.