No dia 13 de março de 2013, há dez anos, a Igreja Católica anunciava para o mundo o nome de seu novo Papa: o jesuíta argentino Mário Jorge Bergoglio, que assumiu o nome de Francisco, o primeiro papa latino-americano a exercer o importante magistério de bispo de Roma, que na tradição da Igreja Católica é o sucessor do apóstolo Pedro.
O magistério de Pedro é considerado, por muitos, o mais decisivo para os rumos e passos históricos da Igreja Católica. Mas quem conhece, minimamente, a complexa dinâmica interna da Igreja, percebe imediatamente que, por maior que seja a visibilidade da figura do Papa, se trata de uma função profundamente colegial. Conduzir uma instituição que tem uma caminhada histórica bimilenar, que consolidou uma forte tradição e que reúne um grupo tão numeroso de membros, não é tarefa simples. Como uma gigantesca e complexa orquestra, cujos componentes comungam a mesma fé, mas possuidores de culturas distintas e situados geograficamente distantes um do outro, o Papa tem o desafio de reger, manter a afinação e a execução da partitura eclesial, que se modifica o tempo todo provocada pelo anúncio-testemunho do Evangelho de Jesus, nas urgências e desafios de cada contexto histórico.
A Igreja Católica possui uma peculiar e intrincada estrutura colegiada. Mesmo com a presença do Espírito Santo a guiá-la, a credibilidade e a coerência institucional dependem em grande medida da fidelidade de todos os seus servidores do Evangelho. Neste sentido, quem é eleito Papa, assim como quem é escolhido bispo, é ordenado presbítero ou diácono, que assume qualquer ministério ou serviço na vida da Igreja, catequista, pastoralista precisa ser alguém convertido pelo encontro pessoal com Jesus Ressuscitado. Alguém profundamente transformado pela cotidiana vivência, pessoal e coletiva, da fé (na vida em comunidade de fé e partilha). Alguém que cultiva intimidade diária com as Escrituras, que é experimentado nos desafios da caminhada cristã e que é conhecedor da história da Igreja. Alguém que assume, como projeto de vida, a contínua busca de fidelidade ao Evangelho e ao processo pessoal e social de conversão a Deus e aos filhos e filhas de Deus, no amor fratersororal (irmãos e irmãs).
No entanto, na Igreja se concretizam, e não poderia ser diferente, relações de poder, com tudo que isso significa. E para bem funcionar, no planejamento de cada projeto, na realização de passos concretos, no gerenciar os conflitos internos, no avaliar constante dos rumos assumidos como nos lembra Jesus, de forma lapidar, em seu Evangelho (Mt 20, 20-28; Mc 10, 35-45), é preciso que o poder seja exercido como serviço à vida e não como mecanismo de dominação de uns sobre os outros.
Se no primeiro plano, para muitos, aparece o Papa, bispo de Roma, a Cúria romana, com sua grande estrutura administrativa, e os bispos do mundo inteiro, considerados os sucessores dos apóstolos, sempre que em comunhão com o Papa, a Igreja Católica se reconhece como Povo de Deus, que acolhe o chamado, celebra a aliança de amor com Deus e se põe a caminho no testemunho da vida nova. A Igreja de Cristo é o conjunto dos batizados e batizadas, de todos que experimentam a presença amorosa e estradeira do Pai, de Jesus Ressuscitado e do Espírito Santo, como luz e força e que assume o desafio histórico de caminhar junto, como Igreja sinodal, em saída para todas as periferias. A Igreja Católica é uma comunhão de Igrejas locais ou particulares, como a Arquidiocese de Belo Horizonte aqui entre nós. Cada uma tem o seu bispo, seus presbíteros, diáconos, religiosos e religiosas, leigos e leigas, com seus múltiplos conselhos, pastorais, grupos, mas a Igreja é todo o conjunto dos batizados e batizadas, que se reúnem em comunidades cristãs, pois, experimentam o chamado ao seguimento de Jesus e à vida nova suscitada pelo Evangelho do Reino.
Toda esta intrincada estrutura organizacional, sempre formada por pessoas distintas e tão diferentes umas das outras, é chamada, pela mesma fé confessada, a cultivar contínua abertura ao projeto salvífico de Deus, que nos foi revelado em Jesus Cristo, e conversão à centralidade do Evangelho da justiça e da irmandade, pelo amor incondicional do Pai, e, com a graça de Deus, ser fiel no se colocar a serviço.
Cada papa possui singularidade, carisma próprio e imprime certa imagem na própria Igreja e na subjetividade das pessoas. Isto posto, como teólogo leigo e latino-americano, o que se pode dizer, nos limites deste texto, acerca do magistério do Papa Francisco, neste marco celebrativo de uma década?
Primeiramente que o Papa Francisco foi e continua a ser uma grata surpresa. Seu magistério tem promovido uma bela “primavera” na vida da Igreja. Diferentemente dos dois últimos papas, João Paulo II e Bento XVI, ele faz outra leitura programática do Concílio Vaticano II (1962-1965) e inaugura nova fase de sua recepção na vida da Igreja. Isso significa assumir a Igreja como Povo de Deus em contínua caminhada de conversão e busca de fidelidade a Deus e ao projeto do Reino da justiça, do amor, da misericórdia e da mesa da irmandade.
De certa forma, traços significativos desta década de esmerado esforço de Francisco em oferecer ao mundo um outro rosto para a Igreja, já estão presentes no Documento de Conclusão da Conferência de Aparecida, em 2007, quando Bergoglio teve participação singular. Nota-se, visivelmente, em seus escritos, reflexões, orações, posturas e gestos, que Francisco tem a mesma força e coragem do Papa João XXIII: discerne os sinais do tempo, convoca a escuta, reflete, retoma, aprofunda, ressignifica e impulsiona processos coletivos de reforma da Igreja para que ela seja cada vez mais fiel em sua missão de evangelizar no complexo contexto contemporâneo.
Este projeto de reforma começou com o próprio modo dele compreender e concretizar o magistério de Pedro. Ser Papa para Francisco não tem qualquer traço monárquico ou centralizador. Ao contrário, assume a virtude da simplicidade do Evangelho. Não teme aproximar ternamente das pessoas, com postura de escuta dialogal sincera. Cria um conselho de cardeais. Valoriza a comunhão eclesial e a autoridade das Igrejas particulares. Convoca sínodos decisivos sobre a vida cristã e a missão da Igreja. Promove encontros com os movimentos populares. Estimula a corresponsabilidade de todos os batizados e batizadas. Destaca o papel das mulheres. Abre as portas do Vaticano aos pobres e invisibilizados. Concretiza gestos proféticos que encarnam a alegria do Evangelho e do ser discípulo de Jesus, mas também denuncia, de forma enfática e jesuanicamente enérgica, as contradições presentes na atual vida da Igreja: clericalismos, carreirismos, jogos impiedosos de poder, corrupções econômicas, escândalos e abusos sexuais, indiferença social diante dos pobres e vulneráveis, moralismos etc.
Nesse sentido, Francisco rapidamente atraiu inimigos, sobretudo dentro da Igreja. Enfrentou, desde o início de seu magistério, e continua a enfrentar resistências, muitas críticas e oposições, paulatinamente crescentes e explícitas, especialmente de quem não acolhe a necessidade urgente de reforma da Igreja ou de quem não aceita que a Igreja, por ser santa e pecadora, se sabe necessitada de conversão e de reformas para ser fiel à sua missão. Mas a profundidade bíblica e teológica de seus escritos – encíclicas, exortações apostólicas, cartas, homilias, orações, entrevistas… – seu carisma de pastor, seu sorriso acolhedor, sua santidade pessoal e coerência de vida são imensamente maiores e mais fortes que as palavras de seus contraditores e críticos mais virulentos.
Para finalizar, creio que a maior contribuição do magistério do Papa Francisco pode ser contemplada no conjunto da sua obra. Um projeto de Igreja fiel e coerente, impulsionado por alguém que se deixou transformar pela experiência do amor misericordioso do Abba querido, que cultiva, com intimidade, o encontro com Jesus Ressuscitado, que se deixa provocar pelo Evangelho do Reino e que, como Pedro, consciente de sua pequenez e fragilidade, confia plenamente na luz e na força da Ruah Divina. Por isso assume com paixão e entusiasmo a missão de provocar e convocar a Igreja Povo de Deus para repensar a sua identidade e razão de ser. Francisco animou um criativo processo eclesial de conversão, que culminou em muitas experiências concretas. Por exemplo, na criação da Conferência Eclesial da Amazônia, na realização da primeira Assembleia Eclesial da América Latina e do Caribe e, agora, depois de grande escuta, sob os eixos da comunhão, participação e missão, o processo sinodal em curso, o Sínodo sobre a sinodalidade. Este vem impulsionando reflexões decisivas e alimentando um processo de conversão sinodal que exigirá o crescimento de todos, mudanças estruturais profundas, novas práticas pastorais e o engendramento coletivo de um jeito novo de ser Igreja e caminhar juntos: uma Igreja decididamente em saída para todas as periferias.