Amor estampado na pele

Pesquisa analisa o fenômeno das tatuagens memoriais
João Victor de Pádua Azevedo, psicólogo | Foto: Raphael Calixto
João Victor de Pádua Azevedo, psicólogo | Foto: Raphael Calixto

Contrariando a tendência de queda vivenciada por diversos setores por conta da pandemia de Covid-19, a indústria global de tatuagem superou a porcentagem prevista para bens de consumo e serviços em 2021 e alcançou um crescimento de 23,2%, conforme dados de uma pesquisa divulgada pela IBIS World. No Brasil, que ocupa a nona posição entre os países com o maior número de cidadãos tatuados, o setor foi além do resultado global, com uma alta anual de 25%, de acordo com o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae). Ainda de acordo com as pesquisas, durante o período de pandemia, retratos ultrarrealistas e desenhos com motivos espirituais figuraram entre os mais pedidos.

Se a pandemia modificou o modo como lidamos com diversas emoções e situações da vida cotidiana, talvez uma explicação para esse dado seja o fato de que muitas pessoas não puderam se despedir de seus entes queridos por meio de rituais sociais tradicionais, como velórios e enterros, por causa das medidas de contenção do vírus na época.

Foi durante uma monótona sessão de terapia, ainda nos tempos em que era estagiário, que o psicólogo João Victor de Pádua Azevedo se interessou pelo tema. Ao atender uma paciente que tinha muita dificuldade em se expressar, ele observou uma tatuagem no seu braço e perguntou sobre o que se tratava. A partir daí, ela falou como nunca antes. “Ela me explicou que era uma homenagem a um amigo que morreu, me contou toda história e o motivo de ter se tatuado”, se recorda. A partir daí, seus olhos se voltaram para as histórias de amor e de dor marcadas na pele. Esse interesse percorreu sua trajetória acadêmica, virando tema de seu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) e, posteriormente, na dissertação Luto e Corpo: Considerações psicanalíticas acerca das tatuagens memoriais, desenvolvida no Programa de Pós-graduação em Psicologia, sob orientação da Profª Drª Cristina Moreira Marcos.

Por definição, tatuagens memorialísticas são aquelas feitas em homenagem a algo ou alguém que foi perdido. Outra definição possível é de que são tatuagens realizadas durante ou após o processo de luto. “É importante entender que a perda e luto não dizem apenas da morte, mas também do término de situações como um relacionamento, uma amizade, um emprego, um sonho ou qualquer outra coisa que tenha significado importante na vida da pessoa”, pontua João Victor, que é professor da disciplina Análise de Comportamento no Curso de Psicologia da Unidade Barreiro.

Para investigar esse fenômeno, ele analisou a produção de tatuagens memoriais em pessoas enlutadas, utilizando o método de Investigação Psicanalítica de Fenômenos Sociais. A pesquisa envolveu etapas quantitativas e qualitativas, com coleta de dados por meio de um formulário on-line, análise das respostas e entrevista. “Não foi delimitado idade e nem região, apenas a necessidade de que a pessoa tenha uma tatuagem memorial”, explica o pesquisador sobre o critério de seleção.

Rosauria Lobato foi uma das 75 participantes. As quatro tatuagens que a fotógrafa de 61 anos possui são destinadas aos seus amores. A primeira delas foi feita aos 45 anos por seu sobrinho, o tatuador Rômulo, que faleceu em um acidente de moto. “Na época fiz o beija-flor por achar lindo e hoje representa muito para mim. É uma lembrança do meu sobrinho e afilhado”, conta. Apenas seis meses após perder o seu sobrinho, ela sofreu outro golpe do destino. Perdeu a filha Graziela, aos 28 anos, vítima de uma morte súbita. Novamente, ela eternizou seus laços na pele.

“A primeira tatuagem memorial que fiz foi o nome da minha filha e o nome do meu sobrinho com o símbolo do infinito no meio. Queria homenagear os dois e achei esse desenho bem singelo, pois meu amor por eles é eterno. E a tatuagem foi uma maneira de eternizar em minha pele este amor”, conta Rosauria, que posteriormente resolveu homenagear também seus dois filhos vivos. “Fiz a asa com uma auréola e escrevi a forma carinhosa como a chamava, Gra, e um coração abaixo, com dois meninos segurando em uma cordinha e as iniciais do nome deles na camisa, L de Lucas e R de Ramon. Fiquei muito emocionada ao fazer esta tatuagem, pois, essas asas significam que tenho um anjo no céu, e que me faz muita falta aqui na Terra, e que tenho em meu coração muito amor por meus filhos”, explica. Recentemente, ela tatuou um coelho, o sobrenome do seu marido. “Estamos juntos há 44 anos e sem ele eu não teria dado conta de passar por esse luto tão doloroso. Enterrar minha filha foi a pior coisa que já aconteceu, dói todos os dias. A saudade é muito grande, mas o amor é maior ainda, e este amor é eterno”.

A experiência de Rosauria evidencia que a tatuagem é uma forma de dar sentido para a perda e a dor muito similar aos rituais fúnebres. Se para algumas pessoas os rituais tradicionais – funeral cristão, por exemplo – perderam o sentido, a tatuagem pode ser uma reconfiguração desses ritos para um luto “saudável”. “As tatuagens memoriais permitem a ritualização da perda e, com isso, dão a possibilidade de o enlutado retirar-se momentaneamente da solidão ao investir sua energia na procura de um tatuador, na escolha da melhor homenagem ou em dispor-se fisicamente para o processo de ser tatuado. Esse memorial que está localizado no corpo serve como uma das maiores homenagens possíveis, já que exige o sacrifício de um espaço da pele e um processo doloroso até a cicatrização. A tatuagem memorial surge então como uma atualização dos ritos fúnebres, tendo em vista que muitas pessoas foram impedidas de ritualizar suas perdas e outras não veem mais sentido nessas tradições”, conclui João Victor.

Rosauria Lobato | Foto: Raphael Calixto

A importância dos rituais e elementos simbólicos para o ser humano

Os ritos e elementos simbólicos desempenham um papel fundamental na vida das pessoas, pois são ferramentas que ajudam a atribuir significado e compreensão ao mundo ao nosso redor, além de proporcionarem senso de continuidade, promoverem a coesão social e oferecerem conforto emocional, tornando-se essenciais para a experiência humana. “Os ritos oferecem um modo convencional de se portar diante dos outros e provém palavras e gestos formalizados que ajudam o sujeito a atravessar situações críticas. Porém, o que se percebe dos ritos tradicionais é que estão em declínio”, aponta João Victor. Segundo o psicólogo, os ritos funerários vêm perdendo progressivamente o seu potencial de pacificar a dor. “O porquê disso é algo pra ser estudado mais profundamente, mas se deve em grande parte às mudanças sociais em relação ao luto e a um esvaziamento de sentido da prática ritual e religiosa”, aponta.

É nesse ponto que as tatuagens memorialísticas se tornam uma forma de ressignificar a dor da perda. “É difícil pensar em um luto bem elaborado sem a presença do social, do coletivo. Então as tatuagens permitem ao enlutado voltar ao convívio de outras pessoas, seja na procura de um tatuador ou quando apresenta a tatuagem para alguém interessado. Também há a questão da dor. Para muitos tatuados, sentir a dor do processo da tatuagem se torna um ponto de identificação com o sofrimento daquele que faleceu. Também apazigua o medo do esquecimento, já que aquele memorial sempre irá te acompanhar”, explica.

João Victor pontua que, nesse processo pessoal, cada um recria seus ritos à sua maneira, utilizando os elementos que tem ao seu alcance e que fazem mais sentido. Foi a forma como Diego Della Rocca de Camargos encontrou para superar a perda de sua irmã, Fernanda, que faleceu aos 15 anos em um acidente de carro, quando ele tinha 16. “Fiz a minha primeira tatuagem no dia seguinte ao meu aniversário de 17 anos, três meses após o falecimento dela. O desenho que escolhi foi pensando em gostos que compartilhávamos. Ela gostava muito de filmes de terror, e eu também. Então, escolhi uma fonte que poderia ser de um título de filme de terror e tatuei o nome dela”, explica.

Ele dá risada enquanto explica a origem de sua memória, mas, mais que uma recordação sobre um gosto em comum, seu significado é profundo. “Foi uma forma de externalizar tudo, toda a dor que eu sentia internamente”, sintetiza o engenheiro de software, de 26 anos, cuja participação na pesquisa foi uma forma de refletir sobre sua própria história. “Acho que o momento do luto é uma das fases mais difíceis da vida de um ser humano, e contribuições no conhecimento relacionado a isso podem agregar muito e ajudar profissionais da área da saúde mental a guiarem pessoas que estão passando por esse momento a lidarem melhor com sua dor”, opina.

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