Independência não é liberdade

Professores de RI analisam reflexos de silenciamentos e exclusões na construção do Brasil e em sua política externa
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Em 1977, o ex-senador da República e ativista Abdias do Nascimento foi convidado a apresentar um ensaio no Festival Mundial de Arte e Culturas Negras em Lagos, Nigéria. A apresentação da obra, crítica à ideia de democracia racial amplamente difundida pela diplomacia brasileira, foi vetada pelo governo de Ernesto Geisel. Em resposta, o intelectual se apresentou enfaticamente no festival “não como representante do Brasil, mas sobrevivente da República de Palmares”.

O episódio serve como anedota sobre exclusões e silenciamentos na construção do Brasil Nação – e como isso reflete na política externa e na projeção do país internacionalmente. O interesse nacional, traço crucial de uma política externa pragmática na escola de Rio Branco, não representa hoje – 200 anos após nossa independência formal – e nunca representou as várias nações que aqui residem e residiram. Nosso “interesse nacional” é o de uma minoria abastada, que projeta externamente um Brasil moderno (cujo ápice foi a centenária Semana de 22) e internamente cala vozes plurais e nega nossa condição de país latino-americano.

Enquanto Silvio Almeida alerta que independência não é sinônimo de liberdade, e Ailton Krenak que o “nacional aqui é postiço”(*), pairam as perguntas: o que queremos dizer quando falamos sobre liberdade e quais forças introduziram, de forma postiça, e com quais interesses, essa ideia de nação? Nossa breve reflexão apresenta, pois, uma história de continuidades e rupturas em busca do sentido do Brasil nessa efeméride dos 200 anos de independência.

É impossível falar da ocasião sem abordar a infeliz resiliência da narrativa da democracia racial enquanto elemento constitutivo da “comunidade imaginada” Brasil. Trata-se da falsa ideia de harmonia racial e suposta inclusão da população preta – que só ocorre dentro dos limites demarcados do que Berenice Bento chama de necrobiopoder. Essa máquina estatal segue sustentando prisões e favelas, os quartos de despejo dos quais Carolina Maria de Jesus fala. Nessas reencenações tristemente fiéis de senzalas e navios negreiros, o negro é levado à condição de não-humano, do “outro” interno ou, num vocabulário “politicamente correto”, porém fraturado, a cidadãos de segunda categoria.

Nas palavras de Nascimento em O genocídio do negro brasileiro – processo de um racismo mascarado, encontramos uma forma mais acurada de contar a história de como o Brasil se tornou Brasil, e segue se tornando um mesmo Brasil, onde a população negra tem quase o dobro de chances de ser vítima de homicídio (**), quando comparada à minoria branca. Trata-se de um relato visceral e fidedigno que nos leva no caminho oposto ao de um tranquilo (porque cínico, fraturado e incompleto) reconhecimento da presença do negro brasileiro como elemento constitutivo de uma nação multicolor e multicultural como nos diz Gilberto Freyre, em Casa Grande e Senzala.

Nascimento foi acusado de radicalismo e agressividade pelo emprego do termo “genocídio”; ainda há, porém, uma rejeição do termo frente àquilo que foi e vem sendo perpetrado contra nossas maiorias “minorizadas”. O extermínio praticado por colonizadores, navegantes e bandeirantes continua não sendo reconhecido pela elite política enquanto ato genocida. O negacionismo persiste como característica perversa entre cúmplices e genocidas.

Não é fácil e nem confortável reconhecer as raízes sangrentas do Brasil. Nossos dados de violência e padrões de mortandade superam, muitas vezes, guerras civis contemporâneas – como, por exemplo, o conflito na Síria, a guerra do Iêmen e os conflitos no Afeganistão. Somente em 2017, foram mais de 64 mil mortes de jovens negros no Brasil (***) evidenciando, portanto, uma guerra civil não-declarada ou um verdadeiro holocausto urbano, nas palavras dos Racionais MCs, em 1990.

A constatação das diferentes formas de exclusão na política levou à formação de um consenso sobre a existência de um déficit democrático quando as decisões políticas são tomadas, predominantemente, por homens oriundos de grupos majoritários que não possuem, ou não reconhecem, quaisquer experiências nacionais de subalternidade. A desconfiança e insatisfação prolongadas, resultantes do acúmulo de frustrações com um sistema político inconsistente, excludente e descolado da população, reflete uma democracia frágil. Quando o déficit democrático é substancial e duradouro, o resultado é falta de confiança nos governantes, desilusão com as instituições representativas e desencantamento com a política. Nesse terreno fértil para o fascismo, a tríade “Deus, Pátria e Família” ecoa como um mantra que remonta ao desejo histórico da elite por um Brasil ocidentalizado.

Destacar somente esses aspectos, contudo, seria perpetuar a prática de silenciamento sobre pretos e pretas, indígenas e outras populações marginalizadas deste país. Seria, também, obliterar as inúmeras formas de pensar e agir que diferem e combatem as práticas genocidas, buscando caminhos outros para aqueles que não podem habitar totalmente a ficção da “pátria amada” Brasil. Concluir sem reconhecer esses movimentos que buscam um pensamento outro, uma forma outra de agir e existir em coletividade, seria aceitar a vitória da inércia. Assim, faz-se necessário que reconheçamos aqueles e aquelas que tiveram e têm coragem de expor tais raízes e vêm sugerindo caminhos para um (longo) processo de cura: Abdias do Nascimento, Lélia Gonzáles, Carolina Maria de Jesus, Marielle Franco, Ailton Krenak e muitos outros e outras. Presentes.

Se celebramos o bicentenário da nossa independência política, resta um árduo caminho até a superação das violentas chagas da colonização e da sua reprodução cotidiana. Uma reprodução que insiste em se transmutar nos velhos mitos da democracia racial e do homem cordial enquanto traço nacional e que pode ser localizada na nossa sociedade e em todos os níveis de governo – incluindo nossa política externa. Se não podemos superar a característica postiça do que é o nacional nesta demarcação em Abya Yala (****), que possamos pluralizar as vozes que pensam, participam e constituem o cânone de nossa comunidade imaginada.

Professores Péricles Lima, Bárbara L. Campos, Jessica C. de Oliveira, João Fernando Finazzi, Mariana Balau Silveira, Vinicius Tavares de Oliveira

Os professores do Curso de Relações Internacionais de Poços de Caldas analisam, a propósito do bicentenário da independência política do país, completados este ano, os reflexos de silenciamentos e exclusões na construção do Brasil e em sua política externa.

A Revista PUC Minas não se responsabiliza pelas opiniões expressas pelos autores nos artigos assinados.

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