O que será o amanhã?

Estudo analisa a complexidade da lei que proíbe a tração animal
Maxwell Pio, carroceiro há mais de 30 anos, diz que as pessoas não entendem que o ofício compreende também uma comunidade | Foto: Raphael Calixto
Maxwell Pio, carroceiro há mais de 30 anos, diz que as pessoas não entendem que o ofício compreende também uma comunidade | Foto: Raphael Calixto

O que você faria se a sua profissão deixasse de existir? Maxwell Moreira Pio, mais conhecido como Suel, é carroceiro há mais de 30 anos e enfrenta uma difícil realidade: a Lei 11.285/2021, que determina a substituição gradativa dos veículos de tração animal em Belo Horizonte no período de dez anos. A proposta é que as carroças puxadas por cavalos sejam trocadas pelo transporte motorizado. Há ainda o Projeto de Lei 411/2022, que propõe a redução da transição para cinco anos. Dessa maneira, a substituição das carroças aconteceria até 2026 e não até 2031.

“As pessoas não entendem nosso estilo de vida”, conta Suel. Para além do trabalho, o ofício também representa uma comunidade. “Se você encontrar com carroceiros, eles estarão sempre falando de trabalho e compartilhando histórias, alegrias e tristezas. Um apoia o outro”, afirma.

Em contraponto à lei, os carroceiros de Belo Horizonte e Região Metropolitana lançaram uma carta aberta, afirmando que mais de 10 mil famílias serão afetadas e que os trabalhadores se reconhecem como Comunidade Tradicional, o que confere valor no âmbito do patrimônio cultural e imaterial.

Pensando no vínculo entre os carroceiros, os animais e o ofício, a aluna do Curso de Psicologia, Karina Nogueira, desenvolveu a pesquisa O que será o amanhã? Um estudo sobre a mutação nas formas de trabalho de carroceiros de Belo Horizonte após a proibição da utilização da tração animal. O projeto recebeu menção honrosa no 30° Seminário de Iniciação Científica, Tecnologia e Inovação realizado pela Pró-Reitoria de Pesquisa e de Pós-graduação da Universidade e foi orientado pela Profª Drª Mara Marçal. De acordo com a professora, o principal objetivo do trabalho era pensar nos impactos humanos após a aprovação da lei. “É uma discussão inadiável. O ofício dos carroceiros relaciona-se com uma cultura própria e indica o pertencimento a uma comunidade. Sem as carroças, eles terão que mudar de vida”, afirma.

No artigo, Karina enumera os argumentos favoráveis e desfavoráveis da lei. “Os movimentos pelos direitos dos animais afirmam que o bem-estar dos equinos não é considerado pelos tutores e que eles passam por situações de estresse e tensão, não têm descanso adequado e, muitas vezes, os equipamentos utilizados são improvisados – o que pode gerar dor e lesão nos animais ao longo do tempo”, afirma a autora. Ela ainda elucida que a precariedade das condições é consequência da notória presença de carroceiros em grupos com baixo desenvolvimento socioeconômico.

Já os que são contrários à lei, afirmam que as cidades precisam dos carroceiros na mesma medida que os trabalhadores necessitam dos centros urbanos para tirar seu sustento. Karina destaca que o ofício coleta entulhos e resíduos sólidos, levando-os aos locais adequados para descarte. Além de colaborarem para a limpeza da cidade, os carroceiros também participam do combate à dengue, recolhendo materiais que propiciam o acúmulo de água e aumentam os focos de mosquitos.

Sebastião Alves Lima, apelidado de Tião Cirilo, é carroceiro há 50 anos e afirma que trabalhar pelo cuidado e limpeza da cidade é uma honra. Assim como Suel, ele enfatiza a importância do apoio dos companheiros de ofício. Tião é filho de ciganos e conheceu o ofício de carroceiro pelos catireiros, que comercializam animais de diversos portes. “Não tem nenhuma formalidade e um confia no outro. Os ciganos e quilombolas também têm catiras e foi assim que cheguei aos carroceiros”, relata Tião. “Comecei a trabalhar com cavalos aos dez anos. Agora meus irmãos, filhos e netos são carroceiros comigo”.

Outro ponto levantado é que a lei não indica como será feita a transição, como os carroceiros poderão adquirir o veículo motorizado ou se receberão algum auxílio para que desempenhem outras atividades. “Eles se referem aos animais como parceiros de trabalho ou membros da família. Muitos relatam das dificuldades em mantê-los, principalmente com a redução das áreas verdes na cidade. Mas eles não querem, e nem podem, se desfazer dos cavalos” afirma a autora.

Em um contexto tão multifacetado, o estudo retrata os argumentos positivos e negativos da lei. Dentro da Psicologia do Trabalho, o tema chama a atenção pelo desaparecimento de profissões, precarização das condições e a ética que guia as relações dos seres humanos com o meio ambiente. “A situação socioeconômica de trabalhadores informais tem culminado em situações de vulnerabilidade social, precarização e subemprego”, conclui Karina.

Para a pesquisadora Karina Nogueira, a situação de trabalhadores informais tem culminado em situações de vulnerabilidade social, precarização e subemprego | Foto: Raphael Calixto

A tração animal em outras cidades do Brasil

As leis contra tração animal já são realidade em outros locais do país. No Estado do Rio de Janeiro, a lei que proíbe o uso de animais para puxar carroças em centros urbanos foi aprovada em 2016. Em Salvador, foi sancionado um projeto de lei que proíbe a circulação de veículos de tração animal e o trânsito montado na capital baiana. Existem legislações similares em cidades como Curitiba, Vitória, Vila Velha, Recife e no Estado de São Paulo.

No município de Canoas, no Rio Grande do Sul, a lei que proíbe a circulação de veículos de tração animal foi outorgada em 2018. A cidade instituiu em 2021 o projeto Canoas do Bem, que garante benefícios aos que entregarem as carroças e os cavalos. Segundo a Prefeitura, os beneficiados recebem um triciclo para reciclagem, cesta básica mensal, ajuda financeira de R$ 300, vale transporte de R$ 96 e cursos de qualificação. Ao todo, cerca de 90 famílias já foram contempladas pela iniciativa.

A tração animal em áreas urbanas e vias públicas pavimentadas também é proibida no Distrito Federal. A lei entrou em vigor em 2018 e determina que o governo deve desenvolver políticas públicas para capacitar tanto os trabalhadores que desejam migrar para outro tipo de transporte quanto os que optarem por seguir outras atividades profissionais.

Em Poços de Caldas (MG), as tradicionais charretes usadas para passeios turísticos serão substituídas por carruagens elétricas. O protótipo já foi entregue à cidade e estão sendo feitos estudos para viabilizar a aplicação do projeto em todo o município.

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