Retratos do racismo

Dissertação aborda as interfaces entre profissão e vivências pessoais de psicólogas negras em Belo Horizonte

“A minha cor chega aos lugares antes mesmo que eu fale. A minha cor, o meu cabelo, o meu nariz e minha boca. Meu corpo anuncia e denuncia alguma coisa”, declara a psicóloga e ex-aluna da PUC Minas Karinne Vieira. Graduada em 2020, ela conta que, durante sua trajetória profissional, ela e outros colegas de profissão que também são negros, por algumas vezes, já foram recebidos com surpresa após se declararem psicólogos.

Segundo o Conselho Federal de Psicologia, em uma pesquisa que buscava mensurar dados qualitativos e quantitativos das psicólogas no Brasil, 67% das profissionais se autodeclaram pessoas brancas. Ainda segundo o órgão, o número de psicólogas que se afirmam como pretas, amarelas ou indígenas é muito baixo. Se considerarmos a população brasileira, que é composta por 56% de auto declarantes negros, a conta não fecha. Retratos de um racismo que, há séculos, corrompe e molda a sociedade.
Foi impulsionada e incomodada por este cenário, que Gabriele Rodrigues decidiu pesquisar sobre as experiências pessoais e profissionais de psicólogas negras em Belo Horizonte, em uma dissertação no mestrado em Ciências Sociais, na PUC Minas, que contou com a orientação da professora Juliana Gonzaga Jayme, e co-orientação da professora Maria Ignez Costa Moreira. Após uma densa investigação teórica e entrevistas estruturadas com sete psicólogas negras, sua pesquisa corrobora com o que percebe-se ao adentrar em um consultório, escritório ou diversos outros ambientes de trabalho: a psicologia, em sua história, perpetua cenários elitizados e de ocupação majoritariamente branca.

“Um dos principais resultados que obtive é que o racismo esteve presente na vida delas desde a infância e permanece até a vida adulta, no aspecto familiar, acadêmico e também no mercado de trabalho. Elas comentaram que a psicologia ainda é um curso muito branco, em termos de quem cursa e também dos autores trabalhados, que, em sua maioria, são pessoas brancas”, Gabriele relata.

Para a professora Juliana Jayme, orientadora do trabalho, a dissertação de Gabriele contribui para a formulação de políticas antirracistas dentro e fora da Universidade: “Ser uma menina negra neste país exige muita resistência, passar pelo ensino fundamental, médio, pela Universidade e se tornar profissional, mais ainda. A dissertação de Gabriele, construída a partir da experiência das psicólogas negras, iluminada pela discussão teórica afrocentrada, e pela epistemologia de gênero, revela que as pessoas negras em geral, e as mulheres, especificamente, têm seus corpos estigmatizados e violentados ao longo da história e da vida pessoal, são diuturnamente discriminadas em diferentes espaços e instituições, que a psicologia é uma profissão elitizada e, como tal, é majoritariamente branca, e, portanto, não é fácil que as mulheres negras se mantenham na profissão”, relata a professora.

Apesar do interesse específico na área, Gabriele não é psicóloga, e sim professora de Geografia em uma escola pública de Ribeirão das Neves, região metropolitana de Belo Horizonte. Ela conta que o desejo em pesquisar raça e identidade dentro da psicologia veio de inquietações que a acompanham desde a infância.

“Minha motivação para essa pesquisa teve muito a ver com a minha própria vida, e minhas experiências pessoais. Por ser uma mulher negra no mercado profissional, eu quis saber como essas experiências se apresentaram para outras mulheres negras, porque raça e gênero sempre apareceram na minha vida profissional”, disse. Enquanto professora da rede pública, Gabriele também percebia em seus alunos questões que dizem respeito à identidade e representatividade raciais, e que dialogavam com sentimentos que ela mesma abrigava.

“Profissionalmente, eu via que meus alunos não conseguiam avançar no conteúdo que eu estava passando, porque eles tinham outras necessidades anteriores àquelas, e que precisavam ser sanadas de outras formas. Por isso o meu interesse na psicologia, porque eu queria conseguir trabalhar essas questões com meus alunos, que eu acredito que são tão urgentes quanto a alfabetização”, explicou. Foi assim que Gabriele chegou a estudar um período de psicologia na PUC Minas, mas, devido à pandemia, precisou trancar o curso.

Professora de Geografia, Gabriele Rodrigues diz que a motivação para essa pesquisa teve muito a ver com a sua própria vida e experiências pessoais | Fotos: Raphael Calixto

“Era sempre só eu e mais duas”

“Qual profissão não é branca em nosso país?” Esse foi o questionamento proposto por Karinne Vieira, uma das profissionais entrevistadas por Gabriele, ao refletir sobre os números que compõem a psicologia hoje. Ex-aluna do Curso de Psicologia, ela buscou, durante sua graduação, diversificar ao máximo seu currículo, integrando projetos de extensão, projetos Probic e participação em grupos de estudos. Um deles é o GEP – Grupo de Estudos Pretos, idealizado e criado por Karinne, em parceria com o também ex-aluno e psicólogo Leandro Bento, enquanto ambos cursavam Psicologia na PUC Minas.

Criado inicialmente com o enfoque nos estudos da psicologia sob a autoria de cientistas negros, o grupo acabou expandindo-se e, hoje, tem por objetivo estudar pesquisadores negros e temáticas étnico-raciais em uma perspectiva interdisciplinar. “Percebi que, assim como eu, muitas pessoas sentiam necessidade de estudar autores negros em suas áreas de formação. Dessa forma, o GEP passou a se configurar como um espaço de compartilhamento, de experiência de vida para além dos textos teóricos. Durante os encontros, sempre surgiam relatos pessoais que se relacionavam com o tema”, explica Karinne.

No ambiente profissional, a diferença entre a quantidade de profissionais negros e brancos é enorme. Tereza Nogueira foi outra psicóloga entrevistada por Gabriele, e, durante anos, foi minoria em seu local de trabalho. Atuando junto à saúde mental, ela já foi da gerência de um Centro de Saúde em Belo Horizonte, e atesta: o cenário é o mesmo sempre.

“Na regional em que eu trabalhava existiam cerca de 20 cargos de gestão. Dentre estes, apenas eu e mais duas éramos negras. Em outros cargos da área da saúde acontece o mesmo: de 20 profissionais com ensino superior, apenas dois são negros. Acredito que vamos ver a mudança disso daqui a alguns anos, devido à política de cotas e outras políticas públicas”, diz.

A temática étnica-racial e a luta antirracista também são pautas discutidas na Universidade. Para a professora Betânia Diniz, diretora da Faculdade de Psicologia, essas são questões necessárias à formação proposta pela Universidade. “Precisamos preparar os jovens profissionais para lidarem com essa questão, para acolher e contribuir com a elaboração do sofrimento decorrente do racismo e suas consequências. Uma formação humanista não pode prescindir de qualificar os profissionais para serem antirracistas. Uma sociedade plural e inclusiva é muito mais rica e promissora. A Faculdade de Psicologia tem estado atenta à discussão das questões étnico-raciais em diversas disciplinas, dentre elas, a disciplina Psicologia e relações étnico-raciais”, diz a professora.

Ela chamou atenção ainda para discussões promovidas pelo programa #FapsiaoVivo, cujo tema de abertura do segundo semestre de 2022 contou com a participação de integrantes do Grupo de Estudos Pretos e abordou os 10 anos das cotas raciais e os possíveis caminhos da discussão atualmente.

O debate acerca da necessidade e importância de políticas públicas direcionadas à população negra também é uma demanda defendida por Gabriele. Ela comenta sobre como sua entrada na Universidade, por meio de uma política pública, alterou sua trajetória pessoal e profissional.“A Universidade foi um divisor de águas na minha vida. Eu sou fruto de uma política pública, e espero que meu trabalho sirva de inspiração para que outras pessoas também tenham esse acesso”, diz.

Mais do que investigar as relações entre identidade, raça e profissão, Gabriele buscou, em sua pesquisa, oferecer um espaço de identificação e validação.“O meu intuito também foi registrar relatos do que as pessoas já passaram e ainda passam, mas nem sempre são ouvidas, e dizer sobre a necessidade de haver uma mudança de envolvimento coletivo, por que essa inclusão é uma responsabilidade social”, diz.

Karinne Vieira, uma das profissionais entrevistadas para a pesquisa: “Qual profissão não é branca em nosso país?”

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