A REGLOBALIZAÇÃO E A NOVA ERA DAS RELAÇÕES INTERCIVILIZATÓRIAS

Especialista reflete sobre os males da globalização neoliberal e dos benefícios do surgimento de novo processo com características chinesas que está em curso
Quinho

“A armadilha da globalização está na mesma semente da globalização, uma espécie de autodestruição do processo de intensificação e ampliação das relações capitalistas. Ela leva à desumanização e à polarização crescente”. Essa afirmação do coordenador do Programa de Pós-graduação em Relações Internacionais, o professor Javier Alberto Vadell, resume boa parte de sua reflexão sobre o fenômeno da globalização neoliberal que se aprofundou com a retomada da hegemonia dos Estados Unidos e se consolidou com o final da Guerra Fria e dissolução da União Soviética, em 1991.

Membro do Conselho Científico do Instituto de Estudos da Ásia, do Grupo de Trabalho da Clacso China e o Mapa do Poder Mundial e líder do Grupo de Pesquisa de CNPq Estudos Globais e a China, Vadell é um estudioso do fenômeno da globalização com características chinesas, tema para seu pós-doutorado que será iniciado no próximo semestre, no Centro de Estudos Asiáticos da Universidade de Aveiro, em Portugal.

Nesta entrevista, o professor discorre sobre a reglobalização e a nova era das relações intercivilizatórias. Trata-se de um fenômeno em curso, ainda embrionário, ou seja, uma globalização ancorada na produção, nos investimentos em infraestrutura e no comércio de bens e serviços, baseada nos benefícios mútuos, coexistência pacífica, não intervenção nos assuntos internos de outros estados e fundamentada na ideia de comunidade de destino compartilhada para a humanidade.

Depois da intensificação do processo de globalização, na década de 1980, e da chamada desglobalização, a partir de 2008, segundo apontam alguns estudiosos, fala-se já há algum tempo em reglobalização. Quais os traços mais marcantes dessas fases?

A globalização neoliberal não começa de um dia para o outro. É um processo até contraditório. Desde a década de 70 vem se aprofundando junto com a retomada da hegemonia dos Estados Unidos e se consolidando com o fim da Guerra Fria e a desintegração da União Soviética. Não é um processo só econômico, é cultural, ideológico e institucional. E, além disso, implica numa geopolítica específica baseada num mundo unipolar. Isso explica, em parte, as ações unilaterais dos Estados Unidos. Qual é todo o argumento por trás dessa globalização neoliberal? A ideia do fim da história (a democracia liberal como último estágio da história “derrotando” o socialismo real). E essa ideia vai logicamente junto com um processo expansivo na década de 80 e 90 do poderio dos Estados Unidos. E, na nossa região, se manifesta com a crise da dívida externa nos anos 80 e a ideia de que o único caminho para superar essa crise seria o receituário do Consenso de Washington. Isto é, o cardápio único que fornece essa globalização neoliberal para o Sul Global, liderada por atores como as grandes corporações, os grandes poderes dos Estados Unidos, que marcam o caminho que teríamos a percorrer para atingir o desenvolvimento. Isso significa basicamente liberalizar as finanças e o comércio de maneira unilateral, privatizar, enfraquecer os movimentos sociais e sindicatos, promover reformas trabalhistas que precarizam o trabalho, etc.

Por outro lado, uma evidência da geopolítica da globalização é a expansão da Otan após a desintegração da União Soviética. O Ocidente teria prometido ao Gorbatchev, líder da então URSS, que a Otan não iria se expandir. Apesar disso, aconteceram cinco expansões da Otan para o Leste Europeu, além de intervenções ofensivas na Iugoslávia, Iraque, Líbia e Síria. Temos aí um paradoxo: a globalização neoliberal promovendo a expansão geográfica do capital, do capitalismo, como inclusive aconteceu na China. Por outro lado, a intensificação das relações mercantis (mercantiliza-se o ser humano, privatizam-se instituições públicas que derivam na mercantilização de aspectos da vida social que não eram mercantilizados, como a saúde e educação pública, por exemplo). Se você tira direitos do trabalhador, está mercantilizando ainda mais o ser humano, está coisificando o ser humano como mercadoria. Esse processo entra em crise em 2001. De fato, eu não sei se existe esse fenômeno da desglobalização. É uma leitura particular do movimento dos processos de expansão e retração do capital. Desde meu ponto de vista, trata-se de movimentos do processo da expansão do capital. Desglobalização talvez sejam algumas respostas nacionais, como hoje acontece na Rússia ou antes em outras regiões do Sul Global. Podem se dar como respostas radicais culturalistas frente ao que eles consideram como expansão do imperialismo ou a ‘americanização’.

Na sua opinião, quais foram os males – ou as armadilhas – da globalização?

Eu vou sintetizar em dois acontecimentos: a ascensão da China e a questão da Rússia. A intervenção da Rússia na Criméia após o golpe de estado na Ucrânia de 2014 foi crucial. O conflito atual começa há oito anos. Tínhamos a esperança, em 2015, de que o acordo assinado pela Rússia, França, Ucrânia e Alemanha em Minsk fosse duradouro, mas foram sabotados. Os Estados Unidos e os governos da Ucrânia pós 2015 não mostraram interesse em materializar esse acordo. Estamos num processo de transição nesse conflito que tem implicações globais e pode ser longo. Embora a mídia oficial noticie uma narrativa homogênea, por exemplo em redes como Telegram, podemos observar outras opiniões da crise atual: visões desde o mundo árabe, da Índia, do Irã, da China e da Rússia. Essa é uma visão totalmente diferente da do Ocidente. Então, a armadilha da globalização está na mesma semente da globalização, uma espécie de autodestruição do processo de intensificação e ampliação das relações capitalistas que na sua luta por defender uma visão liberal age de maneira contrária cancelando outras vozes. Na trajetória à desumanização e à polarização crescente fornece uma narrativa conservadora. O capitalismo tem esse problema: é um processo de polarização muito cruel. Assim como você pode afirmar que a França ou os Estados Unidos são expressão do capitalismo, também podemos afirmar que o Haiti, Yemen ou Mali também o são. Ele é uma totalidade. As favelas e os bilionários são resultado do modo de produção capitalista em ação. Essa contradição é inerente ao processo da polarização, e ela foi crescente. Nesse sentido, a globalização neoliberal é uma expressão financeirizada desse processo. A narrativa hegemônica de que as soluções sociais se dão a partir da ideia utópica do livre mercado e da liberdade individual absoluta torna-se um pesadelo da desintegração do tecido social, como antecipara Karl Polanyi. O caso paradigmático é o Afeganistão. Foram 20 anos de intervenção dos EUA e qual o resultado? Não construíram uma ponte nesse país, os grupos radicais voltaram com o apoio popular, e agora estão formando um governo, e ainda confiscaram [os EUA] as reservas que o Afeganistão tem fora. A destruição da Líbia é um outro exemplo: o que deveria ser a expansão dos mercados e da globalização, vira um pesadelo de violência e miséria.
E, agora, é a vez da Ucrânia….

Você estava explicando que não concorda que houve a desglobalização, como dizem alguns estudiosos.

Afirmo que não houve uma desglobalização porque a interdependência econômica dos atores nacionais e corporativos globais não se desfez. Em setores financeiros e nas cadeias de valor até se consolidaram. A desglobalização teria que ter um correlato na regionalização, um mundo dividido, e não foi o que aconteceu. Os grandes bancos internacionais têm interação complexa, eles trabalham na China e em paraísos fiscais no mundo todo. O setor financeiro, que é o elemento fundamental da globalização neoliberal, trabalha com total liberdade pelo mundo. Na época de [Donald]Trump houve uma guerra comercial contra a China, que não deu os resultados esperados. Ao contrário. Ela aprofundou a dependência das companhias americanas e dos EUA em relação à China, o déficit dos EUA cresceu. As companhias americanas que produzem na China não vão sair de lá para produzir nos EUA. Se houvesse acontecido isso, poderia ter havido a reversão da globalização e não foi o que ocorreu. E mais: o primeiro-ministro anterior do Japão falou que ia dar subsídios bilionários para empresas japonesas saírem da China e voltarem ao Japão. As empresas japonesas que trabalham na China, lideradas pela Toyota, rejeitaram a proposta porque a China, com o quarto plano quinquenal, prevê quase a duplicação da classe média chinesa (de quatrocentos milhões irão passar para 700 milhões em 2030). Qual empresa vai querer sair desse mercado? Então, o processo de desglobalização não tem fundamentos empíricos, é só retórico. E a partir daí posso fazer o gancho com a ideia de globalização com características chinesas, diferente da globalização neoliberal, baseada na produção, no desenvolvimento e no comércio e não nas finanças. É como se fosse uma negação da globalização neoliberal.

E o que seria essa globalização com características chinesas?

É um processo embrionário, que está surgindo e que poderia ser entendido como reglobalização com características chinesas. A ascensão da China e esse período de conflito entre a Rússia e a Ucrânia de 2014 até os dias de hoje está alterando o mapa geopolítico global. As rupturas sociais e seus movimentos levam tempo. Logicamente que a economia neoliberal tem o elemento financeiro como seu núcleo dinâmico e principal fundamento: economias financeirizadas, pouco produtivas e pouco competitivas. Seus atores principais se desenvolvem no mercado financeiro global. Por outro lado, a globalização com características chinesas está ancorada na produção, nos investimentos em infraestrutura e no comércio de bens e serviços, baseadas nos benefícios mútuos, coexistência pacífica, não intervenção nos assuntos internos de outros estados e a ideia de Comunidade de destino compartilhada para a humanidade. Trata-se de um processo em curso. E o conflito na Ucrânia está acelerando esse processo. A grande parceria da China com a Rússia é geopoliticamente crucial. Por isso convido a ler o Joint Statement, assinado pelos governos da Federação Russa e pela China, de fevereiro de 2022. Trata-se de uma declaração conjunta, muito sofisticada, publicada antes das Olimpíadas de inverno, entre a Rússia e a China. Esse documento marca o rumo dessa globalização com características chinesas. Embora os chineses não explicitem, ela implica numa nova geopolítica, porque é uma projeção de poder e isso já está produzindo conflitos com os EUA. Isso está bem claro para nós.

Diante disso, o que se projeta num cenário próximo de colaboração entre nações? O que se pode vislumbrar de melhor ou pior num cenário próximo?

O caminho para um cenário melhor ou pior sempre fica aberto. Isso sempre vai depender dos atores e como eles interpretam o devenir da história. Mas para isso temos que fazer o diagnóstico correto. Está se vendendo um material deturpado, irreal, na mídia em geral. Se fizermos o diagnóstico incorreto, vamos ter resultados complicados. Isso acontece em qualquer área do conhecimento. A população em geral não consegue fazer um diagnóstico correto, não porque seja incapaz, mas porque só recebe uma narrativa: só uma fonte de informação pasteurizada e monopolizada. Por exemplo, personalizar o conflito na Ucrânia ou qualquer problema no Ocidente: Putin é o culpado por praticamente tudo. O presidente da Rússia é responsável pelo Brexit, pela guerra, pela pandemia, pela inflação. Ele na narrativa é tão poderoso que pode praticamente tudo. Virou uma caricatura absurda que não explica o fenômeno social em curso.

O Ocidente (me refiro aos EUA, à União Europeia e à Otan) tem grande responsabilidade no conflito. A posição, por exemplo, da China nesse conflito é, em primeiro lugar, a de colocar um limite aos EUA, mostrar que o país norte-americano deve ser mais humilde, que não está em posição de impor uma ordem unilateral para todos os atores. E a única ordem que pode surgir no mundo, na realidade, é a partir de uma realidade multipolar. Se se tenta impor uma ordem unilateral num mundo multipolar, haverá mais violência. As maiores potências do mundo são nucleares. Se a violência escalar, acabará o planeta (Rússia, EUA, China, mas tem outras potências regionais com armamento nuclear como a Índia e o Paquistão). Em maio, quando a revista for publicada, podemos ter um acordo de paz assinado ou não, não o sabemos. O conflito pode permanecer por muito tempo, numa situação de impasse tenso no centro da Europa. Evidentemente os russos vão ganhar a batalha militar, mas o problema é o depois. Uma espécie de muralha no meio da Europa implicará mudanças na economia global. Não necessariamente uma nova Guerra Fria, mas quiçá uma configuração ainda mais complexa. Sinceramente, no Ocidente não sou muito otimista, porque, inclusive, o grupo Meta – Facebook, WhatsApp e Instagram – autorizou discursos de ódio contra russos. Então, a russofobia hoje – e amanhã será sinofobia – que já estava embrionária, está crescendo no Ocidente. E é muito forte e é estimulada pelos oligopólios midiáticos.

E você atribui isso a essa visão imposta pela mídia e redes sociais?

Não só a grande mídia, mas o monopólio americano de redes sociais. Redes sociais e mídia monopolizada (ou oligopolizada). Quando sai publicado na Reuters, New York Times e Washington Post, a mesma notícia é replicada para o mundo todo nos jornais mais importantes de cada país. Há dois grandes tentáculos: redes sociais com narrativas e políticas de cancelamento e grupos midiáticos oligopolizados em sintonia com as redes. A russofobia e a sinofobia são um produto da era moderna. O lado absurdo de tudo isso é o boicote aos grandes nomes russos, a proibição de tocar Tchaikovsky em tal lugar específico, de ministrar aulas sobre literatura russa, demissão de um diretor de orquestra na Grã-Bretanha, porque era russo, etc.

Qual a sua avaliação sobre o Putin?

Do meu ponto de vista, qualquer governante russo teria agido de uma maneira muito parecida frente à expansão da Otan para o Leste Europeu. Putin é o líder da Rússia hoje, mas não é só ele. Os especialistas falam que o ministro da defesa está cotado para ser o sucessor no futuro, não sei. Tem um bloco no poder do partido Rússia Unida, que representa mais de 45% dos votos, apoiado pelo Partido Comunista da Rússia, que representa mais de 25% dos votos que apoiam a operação militar na Ucrânia. Um outro governante faria praticamente o mesmo, com maior ou menor eficácia, porque trata-se de um assunto de Estado e não de um governante isolado. E é muito interessante, porque isso [a intervenção na Ucrânia] não surge de maneira intempestiva. Ela vem sendo planejada há oito anos, desde o golpe de 2014, e o fracasso na implementação dos Acordos de Minsk assinados pela Rússia, a Ucrânia, a França e a Alemanha. Eles se prepararam para isso e para as consequências (sanções). Eles sabem que é um jogo perigoso, mas ninguém se sentou para negociar com eles. E os acordos que foram assinados não foram respeitados. E entre esses acordos estava a questão dos mísseis apontando para Moscou desde os países da Otan (Romênia e Polônia). Então, não se trata só da questão da Ucrânia. Como disseram o presidente Putin, o ministro Lavrov, Medvedev (que é a ala mais liberal/atlanticista): o assunto era uma questão de sobrevivência da Rússia. Como é gerada no Ocidente, essa informação chega totalmente deturpada. Chega até nós: a Rússia quer outra vez ampliar as fronteiras da União Soviética, quer rememorar a URSS, quer invadir e tomar a Polônia, quer restaurar o Império dos Czares, etc.

E qual a sua leitura?

A minha leitura, sem ser o advogado de Putin ou de seu partido, é que não se trata de uma política expansionista. A Rússia está colocando limites para realizar um acordo. Eles sabem que não vão ganhar corações e mentes no Ocidente. E a outra leitura é que todo o projeto chinês do Cinturão e a Rota (Belt and Road Initiative) [que propõe o desenvolvimento de uma rede multimilionária de projetos de infraestrutura na Ásia, África, Europa e América Latina] depende da parceria com a Rússia. Para a China é muito importante a paz também. A posição da China, que sabe que a guerra é explícita dos EUA contra a Rússia, mas é implícita contra a China, é delicada. O cenário é de uma disputa global muito interessante num mundo que é multipolar. E são esses atores poderosos que vão ter que sentar e pensar numa forma de convivência global. Porque se isso não acontecer, vamos sofrer uma tragédia. E os primeiros que têm que entender isso são os Estados Unidos. Isso vai além da guerra. Com a escalada e a autodestruição mútua ninguém ganha. Então, esse cenário multipolar tem que ser assumido pela elite estadunidense. Eu acho que a única saída é o reconhecimento de uma nova ordem global a partir dos princípios da ONU. Reconhecer que a ideia de democracia que os EUA apresentam não é a única ideia de democracia. Reconhecer que o sistema é multipolar e não unipolar. A ideia de comunidade de destino compartilhada para a humanidade, que foi elaborada pelos chineses, mas que tem seu nascedouro na Europa, se refere a uma comunidade intercivilizatória. E a globalização com características chinesas tem elementos interessantes que não são ditados pelos monopólios dos rentistas das finanças. Desenvolvimento no sentido social, ou seja, tirar as pessoas da pobreza e diminuir as desigualdades são objetivos que deveriam ser primordiais. E outra vez voltamos para a China, que em sua trajetória de desenvolvimento muito particular, que não quer exportar para nenhum país, apresenta dados sem precedentes na modernidade. Dados do Banco Mundial mostram que a China, entre 1981 e 2017, reduziu a pobreza extrema da população de um nível de 88% para 2%. E, em 2021, foi erradicada a pobreza extrema naquele país. A redução da pobreza da China representou para o mundo 79% da redução da pobreza global, nesse mesmo período. E se você colocar Vietnã, um outro país socialista, chegamos a 85%.

Então, este seria um bom modelo?

Isso não significa que devemos copiar modelos, porque não funciona. Porque às vezes são realidades completamente diferentes e, segundo os mesmos chineses, dá errado. O que nós temos que fazer é aprender. Em primeiro lugar, o elemento da redução da pobreza e da desigualdade é fundamental para a construção de uma nova ordem. Isso tem que estar como ponto fundamental da pauta e as políticas para atingir esses objetivos têm que ser adaptadas à realidade de cada nação e região. Não tem modelo específico. Não tem o modelo do Consenso de Washington neoliberal, pensado para ser aplicado para todas as realidades do mundo. Cada país vai ter que achar seu caminho, que eu denomino de novo pacto de convivência global que deve ser baseado na ONU, a partir de um diagnóstico realista de sistema multipolar e intercivilizatório. É preciso ver a realidade da índia, Paquistão, Irã. São grandes civilizações. A China, ou mesmo a Rússia. Porque inclusive a Rússia é um país com maioria de cristãos ortodoxos, mas é um país multiétnico, multirreligioso, tem muçulmanos, budistas, assim como na China. Insisto que temos que fazer um diagnóstico correto do real. A partir daí, entender que o mundo da nova globalização, que tem características chinesas, tem aspectos muito interessantes. A China tem uma característica histórica desde as dinastias mais antigas. Ela nunca foi uma civilização expansionista, nunca foi conquistadora. E eu acho que o espírito de um grande católico humanista teria que chegar a nós, que é o jesuíta Matteo Ricci, italiano que, desde Portugal, entrou por Macau e foi um dos grandes sinólogos da história da humanidade moderna. O espírito de Matteo Ricci é o espírito humanista desde o Ocidente que se entrelaça com o Oriente, com o humanismo asiático. Naquele momento representava a proposta jesuíta de convívio civilizatório. Hoje mais do que nunca essa ideia deve ser resgatada. O espírito de hoje está muito contaminado pela decomposição do eurocentrismo, como um culturalismo, nas palavras de Samir Amin, que parte da arrogância da superioridade inerente da civilização ocidental como um produto historicamente superior. Essa ideia não tem fundamentos nem empíricos nem históricos, é uma ideologia que se tornou autodestrutiva. Eu queria fechar com esta questão que pode me levar a um certo otimismo, mas tendo um pé atrás. Se a gente não reconhecer o diagnóstico correto da força da história, isto é, para onde está indo o mundo e como ele está configurado nas redes e atores de poder global, vamos bater a cabeça na parede e vamos acabar criando monstros que vão nos devorar. Para a crise da democracia o remédio tem que ser mais democracia, adaptada a cada sociedade. Temos que avançar para um processo de institucionalização e de democratização das relações internacionais e intercivilizatórias. Isso está presente também nos escritos do Papa Francisco. A ideia de comunidade de destino, de seres humanos que estão num mesmo barco, da necessidade de uma nova convivência global, de uma nova economia a serviço do ser humano, de novos tipos de desenvolvimento sustentável e da desmercantilização do ser humano e das suas relações. Então, almejar e trabalhar para isso, é fundamental. E não pode ser só uma utopia.