A maioria das pessoas encerra um dia de trabalho com duas certezas: a primeira é a de que logo após o registro sonoro do relógio de ponto, as questões do trabalho ficarão nas agendas, pastas, relatórios e gavetas. A segunda é a de que, fora daquele ambiente, a vida acontece em outro ritmo e tem outro significado.
Para muitos de nós, nossos cargos e profissões não nos acompanham nas férias ou em momentos de lazer – e quando o fazem, são vistos como uma inconveniência necessária, mas temporária. Quem trabalha com a morte, no entanto, por mais que a contemporaneidade tente escondê-la, nunca consegue se livrar do objeto de seu sustento. E, a despeito da sua própria vontade, acaba sendo associados a ela.
Afinal, ela está presente – direta ou indiretamente – nos produtos que escolhemos nas prateleiras do supermercado, que podem prolongar ou não nossa expectativa de vida; nos procedimentos estéticos que fazemos na tentativa de retardar os efeitos do tempo ou na imatura certeza de invencibilidade, tão característica dos primeiros anos da juventude. Certeza essa que Eduardo Felipe Panicalli Cavalcanti de Albuquerque, na época aos 23 anos, deixou de sentir instantaneamente ao entrar pela primeira vez no necrotério do Instituto Médico Legal Dr. André Roquete (IMLAR), em Belo Horizonte. Aprovado em concurso público para o cargo de auxiliar de necrópsia em um período de forte crise econômica no país, Panicalli precisou superar o choque inicial e se acostumar a ver de perto a morte trágica diariamente na sua estação de trabalho.
Interessado na forma como se constrói a subjetividade de quem tem cadáveres como objeto de trabalho no IMLAR, ou seja, em como a natureza peculiar dessa atividade transforma esses trabalhadores, o pesquisador Leanderson Luiz de Sá desenvolveu, a partir de entrevistas qualitativas, a dissertação de mestrado Trabalhadores de Necroatividades: Estudo exploratório à luz das Abordagens Clínicas do Trabalho (ACTs), pelo Programa de Pós-graduação em Psicologia, sob orientação do Prof. Dr. José Newton Garcia de Araújo.
Partindo das constatações de Christophe Dejours, psiquiatra francês especialista em medicina do trabalho, que presumia que encontraria pessoas adoecidas diante de um contexto de trabalho de extrema precariedade, mas constatou um “estado de normalidade”, Luiz de Sá percebeu que as pessoas, trabalhando naquele contexto inóspito, desenvolvem mecanismos para lidar com as dificuldades do ambiente. Essas estratégias criadas para proteger a saúde mental de quem trabalha com a finitude da vida variam, mas, segundo ele, podem carregar um tom de humor. “Por exemplo, enfatizam o caráter técnico-científico do trabalho, racionalizando a atividade e evitando contato com as emoções e sentimentos provocados durante a realização das necropsias”, completa.
Historicamente o trabalho com cadáveres foi ritualizado ou relegado aos párias das comunidades. Considerado um trabalho sujo em algumas culturas, ou seja, algo que precisava ser feito longe dos olhos da população, ou um trabalho sagrado em outras, a atividade sempre contaminou quem a exerce com um estigma. Médicos legistas, tanatopraxistas, auxiliares de necrópsia, necropapiloscopistas, necromaquiadores, sepultadores etc., denominados pelo autor da dissertação como Trabalhadores de Necroatividades, sofrem com a desvalorização social, que pode ser considerada produto de um contexto histórico e, portanto, passível de mudança. Entretanto, para o autor da dissertação, encontram alento e certa dose de conforto uns com os outros, na coletividade e na sensação de dever cumprido. “O coletivo de trabalho é muito importante nesse aspecto, porque ele acaba cumprindo parte dessa necessidade do reconhecimento, valorização e conscientização da importância do trabalho”, reflete.
A dissertação também aborda a diferença entre as tarefas explícitas em atribuições e protocolos da Instituição, o chamado trabalho prescrito pelas ACTs, e o trabalho de fato executado. “No IMLAR, por exemplo, existe um método específico e prescrito de como realizar uma autópsia. A regra é que o trabalhador esteja paramentado com todos os equipamentos de proteção individual e que o ambiente esteja bem iluminado”, relata o autor da dissertação, “mas ninguém prevê que, em dias mais quentes, após ficar em pé por muitas horas, o trabalhador comece a transpirar mais do que de costume. E que, como consequência disso, os óculos de proteção fiquem embaçados, comprometendo a visibilidade”, complementa. O trabalhador, então, retira os óculos e executa a autópsia correndo o risco de contaminação por respingos de sangue.
De acordo com o Prof. Dr. João César de Freitas, coordenador do Grupo de Pesquisa Psicologia, Trabalho e Processos Psicossociais (PsiTraPP), vinculado ao Programa de Pós-graduação em Psicologia da PUC Minas, a temática da pesquisa está alinhada a preocupações observadas nos núcleos de estudo nacionais e internacionais da Psicologia. “Recentemente uma servidora da Polícia Civil de Minas Gerais atentou contra a sua própria vida e, antes de fazê-lo, denunciou as condições e as relações de trabalho que vivenciava. Fatos sociais como esse reforçam a pertinência e a importância desse tipo de estudo.” relata.
Hoje, 30 anos após iniciar sua trajetória no IMLAR e próximo da aposentadoria, o agora o investigador de Polícia Eduardo Panicalli reconhece bem as marcas deixadas por seu trabalho em um ambiente como aquele. “Lidar com a morte foi, para mim, um desafio ao longo da vida profissional. Existem aspectos objetivos causadores de estresse e aspectos subjetivos também. Posso afirmar que o temor ao contágio biológico, excesso de trabalho físico e outras questões sensoriais afetam todos nós” conta.
Inúmeros e, não raro, trágicos, são os casos de adoecimento físico e metal, uso de álcool e outras drogas, excesso de jornadas de trabalho e acúmulo de cargos desses trabalhadores, afirma o pesquisador. “Porém, a necessidade do profissional multitarefa, que se inicia com políticas de Estado, sendo endossada por parte dos gestores do IMLAR, impõe o risco de consequências graves à saúde dos trabalhadores e, consequentemente, para a prestação de serviço à comunidade. Não se trata da atividade em si, ou seja, manipular cadáveres, que se revela o maior fator de sofrimento.” conclui.
Grupo de estudos PsiTraPP
Formado em 2018 a partir de uma pesquisa feita em parceria com uma empresa na cidade de Canaã dos Carajás, no Estado do Pará, o Grupo de Pesquisa Psicologia, Trabalho e Processos Psicossociais (PsiTraPP) reúne cerca de 20 integrantes entre professores, alunos de graduação e de pós-graduação, pesquisadores de áreas como Engenharia de Produção, Administração, Fisioterapia e Serviço Social, e é vinculado ao Programa de Pós-graduação em Psicologia da PUC Minas.
O grupo tem como objeto de estudo o campo do trabalho humano, articulando pesquisas multidisciplinares, alinhado a uma visão crítica das realidades do trabalho. A Psicologia é trabalhada em uma perspectiva além da funcionalista ou daquela que visa adaptar as pessoas aos seus postos de trabalho.