A origem do número zero, inicialmente usado pelos babilônios para representar o espaço vazio, data do ano de 300 antes de Cristo. Criar uma forma para representar o nada, ou seja, a presença da ausência, segundo estudiosos, foi um grande salto conceitual na história da Matemática e possibilitou, entre outros avanços, a criação do sistema binário presente nos computadores.
A perda de um ente querido muitas vezes é representada pelas várias formas que a saudade pode assumir. Na área da Psicologia, convencionou-se chamar de luto um estado emocional específico, provocado pela ameaça ou rompimento de um vínculo de amor e se caracteriza como período de enfrentamento da dor da perda.
Embora seja geralmente avaliado como um necessário processo individual e familiar, especialistas afirmam que o luto é também um fundamental processo civilizatório, com importância social, que propicia a inscrição das vidas no curso da história. Para nós, seres sociais e de linguagens, o reconhecimento do luto ajuda a referenciar e ritualizar a vida em sociedade.
A advogada Luciana Daher, de 45 anos, se deparou com a completa ausência de sentido quando perdeu o pai para o suicídio. Além da partida repentina, sem chance de se despedir, ela e sua família tiveram que lidar com o julgamento das pessoas próximas e várias tentativas de apagamento da existência de seu pai, como se o zero, o vazio, tomasse forma e passasse a ocupar o lugar da memória do pai que tanto a amou e a inspirou a escolher sua profissão.
“Sofremos isso de verdade, e a partir do momento em que você fala, passa a ser referenciada como a filha do suicida, como se a história e a trajetória do meu pai tivessem sido apagadas”, afirma a operadora do Direito que escolheu a profissão inspirada pelo pai.
Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), o suicídio é responsável por um por cento das mortes no mundo, sendo a terceira causa de morte para a faixa etária de 15 a 35 anos. Apesar de, globalmente, as taxas de suicídio terem diminuído ao longo de 20 anos, indo de mais de 800 mil mortes anuais para um pouco mais de 700 mil mortes anuais em 2019, na região das Américas observou-se aumento de 28%, sendo 26% de crescimento na população masculina e 38%, na população feminina, de acordo com relatório da OMS de 2022.
No Brasil, segundo o Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM) do Ministério da Saúde, no ano de 2016 foram contabilizadas 11.433 mortes por suicídio, isto é, quase mil mortes mensais e cerca de 30 mortes diárias. Estatisticamente, isso significou uma média de 5,8 casos para cada 100 mil habitantes. A família de Luciana entrou para essa estatística no ano seguinte.
Na dissertação O luto por suicídio: sobre vivências e sentidos, desenvolvida no Programa de Pós-graduação em Psicologia da PUC Minas e orientada pelo Prof. Dr. José Newton Garcia de Araújo, a autora Daniela Piroli investiga a construção de ações de cuidado com os enlutados e apresenta duas categorias principais sobre o luto por suicídio que o diferenciam do luto por outras causas.
A primeira abarca os impactos psicológicos e descreve o trauma de uma morte muitas vezes violenta, sem chance de despedida; a segunda dá conta dos aspectos socioculturais que transformam essa morte em tabu, responsabilizando os enlutados e os privando de receber apoio e compartilhar suas vivências. “O estigma e o silenciamento intensificam a vivência e a experiência de sofrimento e podem desencadear uma complicação do processo de luto, que deveria ser natural”, defende Daniela.
Os enlutados, ainda de acordo com a pesquisa, são considerados “sobreviventes” porque têm suas vidas transformadas pela experiência muitas vezes traumática desse tipo de morte, definida como um evento ruptura que obriga quem perde uma pessoa por suicídio a elaborar um luto para mesma.
“Essa erosão de sentido identitário para o próprio enlutado provoca questionamentos sobre o sentido da vida, do porquê e para quê viver, ‘quem sou eu’ depois dessa perda?”, argumenta Piroli.
Luciana Daher, que hoje é estudante de psicologia, precisou sair do país para se refazer. Movida inicialmente por uma explosão de raiva – um sentimento comum nesses casos, segundo a pesquisadora –, ela quis brigar com todas as pessoas envolvidas que não previram o que viria a acontecer. Durante os rituais fúnebres, algumas pessoas de dentro e de fora da família sugeriram que não contassem o motivo da morte. “Você não está preparado para esse baque, você acha que está ali naquele momento para sentir a dor e não a vergonha”, conta ao revelar que entendeu de imediato que não teria controle sobre o que as pessoas falariam, mas sentiu repulsa de quem havia sugerido o silêncio.
Na pesquisa, Piroli explica que a morte por suicídio pode desencadear um processo de luto específico e atípico, às vezes cristalizado, que não pode ser abertamente externalizado, uma vez que os enlutados hesitam em falar sobre essa perda por não sentirem liberdade para expressar sua dor, pelo contexto de estigma e tabu que abrange esse tipo de morte. “Além disso, é um luto que pode prolongar-se no tempo, levando a dificuldades e impedimentos na construção de sentidos para a perda, sendo um risco para a saúde mental e também um risco de suicídio do próprio enlutado”, pontua.
Direito ao luto
Estima-se que para cada suicídio consumado sejam impactadas diretamente de 6 a 10 pessoas. Segundo dados de 2018 da American Association of Suicidology (AAS), esse número pode ultrapassar 135.
Os profissionais da área da Saúde podem enfrentar questões subjetivas e objetivas quando perdem um paciente. “Estudos mostram que quase metade dos psiquiatras e cerca de vinte por cento dos psicólogos perdem algum paciente para o suicídio”, descreve Daniela, ao enfatizar principalmente a sensação de impotência e de fracasso observada nesses profissionais que chegam a questionar sua própria vocação. São profissionais cujo sofrimento geralmente é invisibilizado.
Cura pelo coletivo
A PUC Minas sediou, em outubro de 2023, o I Congresso Internacional de Saúde Mental na Contemporaneidade: diálogos sobre o tema suicídio, idealizado pelo Reitor da Universidade, Prof. Dr. Pe. Luís Henrique Eloy e Silva. O evento, realizado pela Faculdade de Psicologia (Fapsi), pela Pró- Reitoria de Extensão e pelo Sistema Avançado de Formação Anima PUC Minas, contou com o apoio do Conselho Regional de Psicologia de Minas Gerais (CRP-MG) e da Conferência dos Religiosos do Brasil (CRB Nacional).
Para Daniela, a abordagem multidisciplinar do tema no Congresso, com profissionais da Psicologia, da Teologia, da Filosofia, trouxe, de forma inédita, discussões muito éticas e respeitosas para o campo dos estudos sobre a morte. “Apresentei a minha pesquisa em um dos grupos de trabalho e ouvi vários relatos de pessoas que perderam parentes e amigos por suicídio e que se sentiram à vontade para compartilhar suas vivências naquele momento”, relata ao enfatizar a possibilidade do estudo ser um disparador para que outras pessoas se identifiquem e consigam falar sobre suas dores.
Atualmente, de acordo com dados da OMS, a tentativa e o suicídio são considerados crimes em cerca de 20 países. No entanto, Daniela argumenta que a criminalização não diminui as taxas desse tipo de morte e ainda impede que as pessoas procurem ajuda adequada. “Além disso, toda essa carga semântica de proibição associada ao suicídio contribui para ocultação deste tipo de morte e, consequentemente, para o subdimensionamento da questão, o que dificulta o desenvolvimento de estratégias de atenção na prevenção e na posvenção, ou seja, nas ações para minimizar os danos subjetivos e sociais daquela perda”, diz.
Entre as ações de cuidado direcionadas aos enlutados, Daniela aponta os grupos de apoio como importantes espaços de legitimação e reconhecimento da dor, psicoterapia, incentivo à realização dos rituais de despedida, e uma abordagem voltada para as necessidades daquele indivíduo já que, apesar de comum, esse tipo de luto será vivido de maneira muito singular. “Sabemos que, principalmente no primeiro ano após uma morte por suicídio, aquela pessoa poderá precisar ser acompanhada e ter algum tipo de apoio especializado”, afirma.
Luciana pôde contar com o apoio de alguns membros da família, mas não encontrou a mesma receptividade fora de casa. “As pessoas não vêm te abraçar. As pessoas não querem te ouvir. Na verdade, elas ficam com medo de falar sobre isso fora do Setembro Amarelo, mas o suicídio acontece todos os dias”, conta referindo-se ao mês dedicado à prevenção do suicídio.
De acordo com Daniela, muitos enlutados sentem a necessidade de ajudar outras pessoas que passaram pelo mesmo drama, sendo os mais comuns trabalhar voluntariamente no CVV ou escolher uma profissão na área da Saúde. Tentar achar um sentido nessa ruptura por meio do trabalho, afirma a pesquisadora, ajuda os enlutados a elaborarem o luto de si mesmos. “Mas acho importante fazermos a liberação semântica historicamente atribuída ao suicídio de crime, loucura, doença mental, e o enxergarmos de maneira plurissemântica, liberando o viés de estigma associado a ele”, conclui.
SAIBA MAIS
O grupo de apoio aos enlutados pelo suicídio, criado pela psicóloga e pesquisadora Daniela Piroli, se reúne mensalmente na região Centro-Sul de Belo Horizonte. Inscrições podem ser feitas por meio de um formulário disponível no perfil profissional da psicóloga no Instagram: @daniela.piroli.psi. Se você estiver passando por um momento difícil, saiba que existem recursos à disposição para ajudar. O Centro de Valorização da Vida (CVV) está disponível gratuitamente 24 horas pelo número de telefone 188. CAPS, Unidades Básicas de Saúde, Postos de Saúde da família, Centros de Saúde, Prontos-Socorros, hospitais públicos e unidades de pronto atendimento estão equipados para atender pedidos de ajuda. Quando você pede ajuda, você tem o direito de ser respeitado e levado a sério; ter o seu sofrimento levado em consideração; falar em privacidade; ser escutado e encorajado a se recuperar.
A taxa de mortalidade por suicídio é considerada baixa no Brasil, mas apresentou uma tendência de alta nos últimos anos.
Estudo do Centro de Integração de Dados e Conhecimentos para a Saúde (Cidas) da Fundação Fiocruz Bahia, com colaboração de pesquisadores da Universidade de Harvard, publicado em março de 2024 no periódico científico The Lancet, aponta um crescimento de mais de 6% na taxa de suicídio entre jovens de 2011 a 2022.