Maternidade em contexto de uma favela: “luta diária”. Essa é a definição de uma mãe que vive na Pedreira Prado Lopes, em Belo Horizonte. A maternidade é um processo desafiador de muitas maneiras para as mulheres e muitas vezes vem acompanhada de mudanças físicas, emocionais e psicológicas. Contudo, ao ser uma mãe inserida nos bolsões de pobreza, que convive à flor da pele com o tensionamento dos efeitos da desigualdade social, há ainda a preocupação em manter seus filhos vivos, seja afastando-os do tráfico ou protegendo-os da violência policial.
Essa preocupação foi relatada por grande parte das mães participantes da pesquisa Mães que vivem em uma favela: o que elas nos dizem sobre a maternidade?, apresentada ao Programa de Pós-graduação em Psicologia por Luciana Lemos Vianna e orientada pela Profa. Dra. Cristina Moreira Marcos. Ao longo de sete semanas, a pesquisadora frequentou o Centro de Saúde da Pedreira, comunidade que surgiu em 1920, na região Noroeste da capital, e conversou com diversas mães, articuladas ao serviço de saúde, para escutar os dizeres sobre o exercício da maternidade, ou seja, o maternar dessas mulheres.
Luciana se interessou pelo tema ao realizar outro projeto em sua graduação. “Estávamos na pandemia e tínhamos o interesse de escutar mães que viviam um contexto de maternidade privada no interior dos lares. Quando disparamos os convites nas redes sociais, alcançamos um público muito específico, pouco variável, vamos dizer assim… Mulheres classe média, classe média alta, em sua maioria brancas, e isso gerou um certo incômodo”. Somado a isso, quando a psicóloga iniciou seu mestrado, encontrou poucas pesquisas sobre maternidades que vivem contextos de vulnerabilidade social.
Durante os encontros, que costumavam ter de quatro a dez mães participantes, foi utilizado o método da conversação, um modo de operar com a Psicanálise em um dispositivo coletivo, marcado por acolher e localizar nos mal-entendidos e nas surpresas da linguagem a relevância do que é dito. “Nessa cena, o analista propõe um vácuo para as mulheres dizerem o que vier à cabeça”, explica Luciana.
Para estudar as maternidades dessas mulheres, foi necessário conhecer e investigar as origens históricas, sociais, econômicas e culturais da desigualdade no Brasil. “Estudar o passado colonial e escravocrata que atravessa a história do país foi imprescindível, visto que esse período marca estruturas desiguais e violentas que ainda se perpetuam nos dias atuais. Na pesquisa, investigamos os modos pelos quais as práticas coloniais de reprodução da escravidão e de produção de riquezas incidiram sobre as mulheres e seus corpos”, explica a professora Cristina, orientadora da dissertação.
Durante as conversações, foi possível identificar nessas mulheres várias versões de maternidade, mas três foram as mais visíveis: mães cuidadoras (que cuidam dos filhos de outras mães), mães dolorosas (cuja existência se consome no sofrimento pelo filho) e mães protetoras (marcadas pelo amor que não se mede). “Tratam os filhos como um objeto valioso. Prendem para não perdê-los. Essas mães ficam consumidas pela proteção excessiva”, exemplifica a pesquisadora sobre o último tipo citado.
A dissertação registrou que é possível prever um excesso de preocupações com os filhos, especialmente provocadas pelo medo constante da perda para a violência das ruas ou de faltarem recursos materiais. Se, de um lado, o filho aparece como foco de boa parte de suas preocupações, também é o objeto mais querido delas.
Daniela Monteiro, mãe de Pedro, 18 anos, e de Dominique, de 7, é moradora da Pedreira Prado Lopes há quatro anos e usa seu tempo livre para aproveitar a companhia dos filhos. “Perdi todo o crescimento do mais velho, porque eu trabalhava em casa de família. Então, curto meus filhos o máximo que posso”, relata.
Ao ouvir sobre os tipos de maternidade mais evidentes identificados na pesquisa, Daniela, que trabalha como servente de pedreiro na construção do hospital-maternidade da Pedreira, concordou que há realmente mães de todos os tipos na comunidade. Ela diz conviver com várias mães na vizinhança e lembrou-se de uma cuidadora do local. “Quando preciso, quando tem recesso na escola, meu filho fica com uma senhora muito bacana, e ela cuida de muitas crianças”, compartilha.
Ao ser questionada sobre ser uma mãe protetora, Daniela conta que existe o receio de que seus filhos se envolvam com atividades ilegais, mas que o diálogo e a transparência são fundamentais para evitar que isso aconteça. “Falo para outras mães que não precisa excluir o filho da convivência com outras crianças. Explico a situação daqui, como é, como não é. Não escondo nada. Eu sou muito realista”, assegura.
Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostram que a maioria dos lares do país (50,8%) é chefiada por mulheres. Com Daniela não é diferente. Após sair de um relacionamento conturbado com o pai de seu filho mais novo, ela passou a ser inteiramente responsável pelas despesas da casa, papel que ela já cumpria antes mesmo da separação. “Eu fiquei com essa pessoa durante 11 anos. Ele me afastou de todo mundo. Perdi amizades, perdi contato com familiares. Eu trabalhava e ele pegava o meu dinheiro. Ele me manipulava”, relata.
Daniela foi diagnosticada com depressão e impedida por seu ex-companheiro de receber assistência psicológica. Assim que iniciou o tratamento no Centro de Saúde da Pedreira, sentiu-se forte para sair do relacionamento. “Estou me sentindo liberta. Os traumas ficam e machucam muito. Mas estou me tratando. Quero ficar bem, quero voltar a sorrir. Ainda tenho uma caminhada pela frente, mas sinto que já deu tudo certo. Me considero guerreira e vencedora”, finaliza.
A pesquisa passa, então, a integrar o escasso arcabouço científico sobre as maternidades brasileiras. Revelando que os lugares em que cada mãe se insere na sociedade são determinados por certos marcadores sociais que não podem ser negligenciados. “Contudo, precisamos acrescentar que elas também são marcadas pelo lugar em que ocorrem. O não reconhecimento das diferenças existentes entre as maternidades implica a reprodução de estruturas violentas, que excluem a realidade das mães que vivem nas favelas da cidade dos meios acadêmicos, políticos e sociais”, conclui a professora Cristina.
