Janelas para o futuro

Coleções dos Museus de Ciências Naturais testemunham a evolução da fauna e da flora do planeta, oferecendo respostas para questões do hoje e do amanhã
Prof. Dr. Marcelo Ferreira de Vasconcelos é pesquisador e curador da coleção ornitológica do Museu de Ciências Naturais PUC Minas | Foto: Bruno Timóteo
Prof. Dr. Marcelo Ferreira de Vasconcelos é pesquisador e curador da coleção ornitológica do Museu de Ciências Naturais PUC Minas | Foto: Bruno Timóteo

Para muitos de nós os museus de ciências e história naturais são apenas espaços que guardam, congelados, réplicas e instantes do passado, como um álbum de fotografias antigas em três dimensões que, ao contrário das imagens gravadas no papel, permitem até mesmo o toque. Em meio a centenas de armários de metal, no entanto, o pesquisador e curador da coleção ornitológica do Museu de Ciências Naturais da PUC Minas, Prof. Dr. Marcelo Ferreira de Vasconcelos, enxerga no acervo com mais de seis mil espécimes de pássaros da fauna brasileira, alguns deles já extintos, uma janela para o futuro. A partir da análise do acervo é possível investigar os impactos da ação humana. Ao contrário do que se pode supor, as coleções não são estáticas e, à medida que se expandem, testemunham a evolução da fauna e da flora do planeta, oferecendo respostas para questões do hoje e do amanhã.

Um exemplo são os estudos sobre os efeitos do pesticida organoclorado DDT – produto químico de uso proibido no país desde 1998 –, baseados na análise de centenas de ovos de populações de aves de rapina obtidos ao longo de décadas e depositados em diversos museus. A análise do acervo revelou um declínio populacional causado pela diminuição da espessura de suas cascas devido ao uso indiscriminado desse agrotóxico.

Ao investigar as aves catalogadas pelo naturalista dinamarquês Peter Lund (1801 – 1880) e pelo zoólogo Johannes Reinhardt (1816 – 1882), coletadas na região de Lagoa Santa no século XIX, e depositadas no acervo do Museu Zoológico da Universidade de Copenhagen, na Dinamarca, o pesquisador identificou a extinção de 54 espécies de pássaros brasileiros. “Das 314 espécies observadas por Lund na região, quase um terço já não existe mais. O desaparecimento de grandes rapinantes, a exemplo do gavião-real, que estão no topo da cadeia alimentar, controlando populações de muitas espécies de aves e mamíferos, também deve ter desequilibrado as complexas redes de interação ecológica de forma irreversível na região”, afirma Marcelo.

A região de Lagoa Santa, que tem grande importância para a história da paleontologia mundial, está localizada na zona de contato entre dois biomas brasileiros – o Cerrado e a Mata Atlântica –, e sofreu, segundo o pesquisador, uma hecatombe biológica nos últimos 150 anos. Muitas espécies de pássaros, que são bioindicadores, desapareceram da região. Entre as espécies extintas regionalmente, algumas são fundamentais nos processos de dispersão de sementes e regeneração de florestas, a exemplo do tucano-de-bico-verde (Ramphastos dicolorus), do pavó (Pyroderus scutatus) e da araponga (Procnias nudicollis). “Com a extinção local destas aves, possivelmente as plantas que dependiam das mesmas para sua dispersão também podem estar sofrendo diminuições populacionais ou mesmo estarem a caminho de desaparecer na região de Lagoa Santa, num ‘efeito-cascata’ de extinção”, informa.

Invasão do território

O Museu de Ciências Naturais da PUC Minas, ainda segundo Marcelo Vasconcelos, atua como um depositário de exemplares da avifauna encontrados mortos por atropelamentos, predação por animais domésticos (cães e gatos) e atividades de controle de fauna nas pistas do Aeroporto Internacional de Confins. “A coleção ornitológica representa uma ‘fotografia’ parcial das aves da região do nosso século e poderá ser utilizada no futuro para fazer comparações semelhantes às que estamos realizando com as aves coletadas por Lund e Reinhardt, além de diversas outras pesquisas que analisem modificações na morfologia e na genética das espécies ao longo dos séculos”, afirma o pesquisador, que enxerga no material potencial para abordagens inéditas de estudo.

No acervo também consta o registro de espécies mais comuns, muitas das quais não foram coletadas por Lund e Reinhardt no passado, sugerindo uma expressiva substituição de espécies nos últimos 150 anos. “As aves mais sensíveis foram eliminadas e as que se beneficiam de alterações ambientais ocasionadas pela ocupação humana foram as ‘vencedoras’. Espécies típicas da Caatinga e de outros tipos de vegetações mais secas e abertas do Brasil Central são exemplos de espécies que parecem ter invadido a região de Lagoa Santa como a codorna-do-nordeste (Nothura boraquira), e a pomba-asa-branca (Patagioenas picazuro)”, destaca Marcelo. A presença dessas aves sugere que a desertificação e o aquecimento global estão beneficiando estas espécies em detrimento daquelas de florestas úmidas. Ademais, a região foi colonizada por algumas espécies exóticas, ou seja, que ocorrem fora de sua distribuição natural, como o pombo-doméstico (Columba livia), o bico-de-lacre (Estrilda astrild) e o pardal (Passer domesticus).

Ameaçados de extinção

O professor Luís Fábio Silveira, curador no Museu de Zoologia da USP, ressalta que há uma carência de especialistas, o que impede o avanço em muitas áreas do conhecimento | Foto: Acervo pessoal

As coleções biológicas e aqueles que as mantém – os taxonomistas – podem estar ameaçados de extinção. Para o curador das coleções ornitológicas do Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo (USP), Prof. Dr. Luís Fábio Silveira, existe uma carência de profissionais em decorrência da megabiodiversidade do Brasil. “Muitas famílias, especialmente de invertebrados, carecem de especialistas, e isso impede o avanço de áreas do conhecimento. E, por outro lado, há uma deficiência de abertura de novos postos para taxonomistas nas instituições públicas e particulares de ensino e de pesquisa”, justifica, ao explicar que muitos anos são dedicados à formação especializada e qualificada de mão de obra. Os pesquisadores que se qualificam acabam sendo absorvidos por instituições estrangeiras, especialmente da Europa e dos Estados Unidos. De acordo com pesquisa dos professores doutores Antonio Carlos Marques e Carlos José Einicker Lamas, da USP, publicada em 2007, o Brasil possuía 542 taxonomistas, sendo 415 deles em cargos permanentes, publicando em todos os campos da zoologia. Naquele ano, a média de idade desses profissionais era de 45 a 50 anos.

A taxonomia é a ciência teórico-prática responsável pela organização do conhecimento biológico dos seres vivos. O professor Luís Fábio Silveira explica que compete ao taxonomista reconhecer, nomear e classificar a biodiversidade. A classificação correta dos espécimes é fundamental para a pesquisa em ecologia, fisiologia, etologia, biogeografia, bioeconomia, parasitologia, anatomia, veterinária, entre outras áreas científicas. “Sem identificar corretamente os animais e plantas, como conservá-los? A ausência de taxonomistas impede o desenvolvimento da ciência como um todo”, defende o pesquisador, egresso da graduação em Biologia na PUC Minas e atualmente responsável por uma das 20 maiores coleções de aves do mundo, no Museu de Zoologia da USP.

Segundo o professor Marcelo Vasconcelos, ir a campo, coletar material e estudar taxonomia são atividades tratadas como subciência, seguindo uma tendência mundial de produção científica dos países do Hemisfério Norte, que pesquisam temas considerados atuais como análises genéticas e modelos matemáticos de última geração. “Essas nações, localizadas na zona temperada, já realizaram excelentes levantamentos e descrições de suas floras e faunas no século XIX, devido ao elevado número de naturalistas e taxonomistas e, obviamente, à menor riqueza de espécies em comparação com as outras regiões do planeta”, conta.

Marcelo ainda alerta para o fato de que, nos países tropicais do globo, atingidos pela degradação ambiental e extinção de espécies, o trabalho de descrição da biodiversidade é uma corrida contra o tempo. “A falta de taxonomistas pode resultar em novas espécies não sendo identificadas e documentadas, levando a lacunas no conhecimento da biodiversidade ou mesmo à extinção de espécies ainda não descritas”, argumenta o curador, classificado entre 2% dos cientistas mais produtivos e influentes do mundo pelo ranking AD Scientific Index, respeitada avaliação internacional de produção acadêmica.