Raio X da Guaicurus

Projeto faz diagnóstico e traça perfil de trabalhadoras sexuais que atuam em rua do Centro de Belo Horizonte
Para a extensionista Ana Rita, a pesquisa foi uma oportunidade de aprofundar o conhecimento na área de Psicologia Social | Foto: Guilherme Simões

Mãe de três filhos, Jeane começou a trabalhar como auxiliar de serviços domésticos, depois que se divorciou do marido. O dinheiro que ganhava era insuficiente para suprir as necessidades. “Estava muito difícil pra mim, faltando coisas para os meus filhos”, diz. Sem saber o que fazer, ela, que é natural de Linhares (ES), ouvindo uma colega, acabou se interessando por conhecer a rua dos Guaicurus, local de prostituição, no Centro da capital mineira. Ao refletir sobre a sua trajetória de vida, ela cita as palavras da escritora Clarice Lispector: “Antes de julgar a minha vida ou o meu caráter… calce os meus sapatos e percorra o caminho que eu percorri, viva as minhas tristezas, as minhas dúvidas e as minhas alegrias. Percorra os anos que eu percorri, tropece onde eu tropecei e levante-se assim como eu fiz.” Jeane, que em 2024 completa 60 anos, conta que os filhos já estão criados, “encaminhados na vida” e que agora trabalha para o seu próprio bem-estar. “Estou firme na batalha porque ainda me falta alcançar algumas coisas.”

Jeane é uma das participantes da pesquisa realizada pelo projeto de extensão da PUC Minas Diagnóstico Socioterritorial e Assessoramento às Redes de Trabalhadoras Sexuais da Guaicurus, coordenado pela Profa. Márcia Mansur Saadallah, do Curso de Psicologia, por meio de convênio com a Prefeitura de Belo Horizonte (PBH) e em parceria com a Aprosmig (Associação das Prostitutas de Minas Gerais). O levantamento, que pode contribuir para a elaboração de políticas públicas para essa população, identificou o perfil econômico, de gênero, racial e geracional de prostitutas, suas vivências em relação à sua ocupação, à Aprosmig, entre outros. Identificou ainda situações de risco, vulnerabilidades sociais, violências, além de suas potencialidades e desejos. Foram entrevistadas 360 trabalhadoras, que atuam em 24 hotéis da região.

“Um levantamento desse tipo descortina e nos revela outras formas de enxergar o trabalho sexual, a trabalhadora sexual de uma forma geral. Aproxima a sociedade, as políticas públicas e a Universidade de uma realidade a partir de um olhar das próprias prostitutas”, explica a professora Márcia. Ela conta que participaram do projeto cinco extensionistas do Curso de Psicologia, sendo que da aplicação do questionário mais de 26 estiveram envolvidos, do Campus Coração Eucarístico e das Unidades São Gabriel e Praça da Liberdade. “A participação de estudantes é fundamental para uma formação mais humana, cidadã, para uma formação que considere a diversidade”, observa.

Os recursos para o município articular a execução da pesquisa foram obtidos por meio de emenda impositiva, cuja autora foi a deputada federal Duda Salabert, quando ainda era vereadora.

A diretora de Políticas para as Mulheres da PBH, Daniela Lopes Coelho, reitera que as trabalhadoras sexuais também são sujeitos de direito e que, nesse sentido, é necessário que as políticas públicas abarquem a realidade e demandas dessas mulheres. De acordo com ela, o diagnóstico será uma das bases para a atuação da Diretoria. “É uma inovação e um compromisso importante no âmbito do serviço público a realização, por meio da PUC Minas, de um diagnóstico socioterritorial com mulheres que exercem o trabalho sexual na Guaicurus, uma vez que essa região concentra grande parte dos hotéis da capital”, afirma. Para ela, o fato de a PUC Minas ser uma instituição já conhecida foi fundamental para o sucesso da iniciativa. “Presente de forma respeitosa no campo, a PUC Minas já havia construído pontes e relações de confiança com as trabalhadoras sexuais, o que foi imprescindível para a pesquisa”, pontua. Há quase dez anos a PUC Minas faz um trabalho de fortalecimento da Associação das Prostitutas.

A diretora geral da Aprosmig, Maria Aparecida Menezes Vieira, conhecida como Cida, ressalta que o diagnóstico é um relevante instrumento para a criação de políticas públicas para as trabalhadoras sexuais. “Utilizaremos para embasar nossas ações e projetos com e para as prostitutas”, diz. Ela conta que o questionário foi construído em parceria com a Associação a partir de demandas das trabalhadoras sexuais e, por isso, acredita que todos os indicadores são importantes.

A Profa. Márcia Mansur, do Curso de Psicologia, coordena o projeto | Foto: Guilherme Simões

Experiência enriquecedora

Uma das extensionistas é Ana Rita Cardoso de Souza, de 24 anos, do 10º período do Curso de Psicologia, na Unidade São Gabriel. Ela comenta sobre a oportunidade de desenvolver o diagnóstico: “Para mim, essa experiência foi muito enriquecedora. Na verdade, consegui aprofundar muito mais meus conhecimentos sobre como atuar com a psicologia social.” Ela fala também sobre o que mudou em sua visão a partir dessa atuação. “Acho que o principal foi entender como essas mulheres são diversas, múltiplas. Outra coisa que mudou muito foi perceber que, além das violências sofridas, elas também têm muitas potencialidades”, diz.

Contratada pela Proex para coordenar o trabalho de campo, a psicóloga Elizabeth Fernandes, formada pela PUC Minas e voluntária na Aprosmig, conta que ofereceu suporte para os pesquisadores e auxiliou no processo de mobilização das trabalhadoras sexuais. De acordo com ela, em 2016, o grupo chegou a fazer um primeiro diagnóstico, porém, em caráter informal. Com a emenda, foi possível realizar a pesquisa com o rigor científico necessário. “Comecei a enviar propostas para os fundos privados e para várias entidades trazendo a necessidade desse diagnóstico formal”, explica Fernandes, cujo Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) trouxe uma discussão sobre a prostituição, estigmas, invisibilidades e papéis sociais.

SAIBA MAIS

A prostituição na rua dos Guaicurus, no Centro de Belo Horizonte, teve início na década de 1950, quando trabalhava na região Hilda Maia Valentim, mulher que inspirou a personagem Hilda Furacão, do livro de Roberto Drummond, que deu origem à famosa minissérie da TV Globo. Atualmente, trabalham como prostitutas na Guaicurus mais de 4 mil mulheres cisgênero, transgênero e travestis, migrantes do interior de Minas e de outros estados