Vidas que se (re)constroem

Acolhimento e adaptação de imigrantes venezuelanos é tema de estudo
Margioris deixou a Venezuela com a família motivada pela escassez de trabalho e alta da inflação | Foto: Raphael Calixto
Margioris deixou a Venezuela com a família motivada pela escassez de trabalho e alta da inflação | Foto: Raphael Calixto

A crescente chegada de imigrantes e refugiados venezuelanos ao Brasil tem sido um tema cada vez mais abordado por pesquisadores, organizações e entidades. De acordo com dados da Polícia Federal, de 2017 até junho de 2022, mais de 763 mil venezuelanos entraram em território nacional e 301 mil solicitaram regularização migratória em busca de oportunidades e melhores condições de vida. Minas Gerais está entre os principais destinos no país.

A grande demanda de atendimento nas Unidades Básicas de Saúde de Betim a esta população chamou atenção de Denise Figueiró Mendes, que defendeu a tese Vidas que se (re)constroem: Um olhar sobre a imigração venezuelana no bairro Bandeirinhas, na cidade de Betim – Minas Gerais, pelo Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da PUC Minas e que atualmente é professora na Universidade Federal de Roraima. O intuito do estudo foi analisar a percepção do imigrante e refugiado venezuelano que reside no bairro Bandeirinhas, sobre o processo de imigração, as interações sociais com conterrâneos e brasileiros, a construção e reconstrução da identidade, o sistema de significados, modos de vida e processos de sociabilidade.

Durante a pesquisa para a dissertação, Denise pôde concluir que o recomeço de uma nova vida distante do país de origem e a saudade de familiares e amigos, que compartilhavam da mesma cultura e modos de vida, interferem na falta do sentimento de pertencimento dos imigrantes, que possuem dificuldades em aprender a nova língua, se adaptarem a novos costumes e hábitos alimentares.

Mesmo mantendo boas relações com os brasileiros, seus vínculos mais intensos são com seus conterrâneos. “Geralmente, nós ficamos em casa, não saímos muito. Quando estamos com tempo livre ou celebramos datas comemorativas convidamos, na maioria das vezes, nossos amigos venezuelanos e nossas famílias para festejarmos e fazermos comidas típicas, como empanada, arepa e arroz chino”, enfatiza Margioris León Escobar. Na Venezuela, seu país de origem, ela e o marido tiveram dificuldades para encontrar trabalho e começaram a passar por dificuldades. “Tinha dias que fazíamos apenas uma refeição, ou almoço ou jantar”, diz Margioris, que chegou ao Brasil em 2020.

No Bandeirinhas, os imigrantes chegam por meio do Programa de Interiorização, considerado um dos pilares da Operação Acolhida, criada pelo Governo Federal. Pelo programa, através das modalidades de Reunificação Familiar e Reunião Social, eles são acolhidos por parentes, familiares ou conhecidos que assinam um termo de responsabilidade para recebê-los. De acordo com o painel de interiorização do Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome, Betim recebeu, entre 2018 e 2022, 238 pessoas interiorizadas. Porém, segundo a Profª Denise, o fato de chegarem através destas modalidades não minimiza as dificuldades de adaptação e vulnerabilidade, uma vez que são acolhidos por receptores conhecidos e desconhecidos, que se encontram na mesma condição. “Morar no Bandeirinhas é uma ocasião passageira e, mesmo participando de eventos, principalmente em igrejas e escolas – locais que possibilitam compartilhar valores, experiências e modos de vida –, os imigrantes preferem permanecer em suas casas, com familiares, amigos e conterrâneos, por diversos motivos”, defende a professora.

No município, alguns dos agentes mais importantes para o atendimento e acolhida a esses imigrantes são as Irmãs Carmelitas, os Irmãos Franciscanos, pastores, além do Centro de Referência de Assistência Social (CRAS – Bandeirinhas), responsável por cadastrá-los no CadÚnico, para que possam receber cestas básicas e auxílios financeiros do Governo Federal. Margioris conta que através da ação destes agentes sua adaptação ao país tem sido facilitada com a oportunidade de participar de cursos sobre renda familiar, saúde e Língua Portuguesa, por exemplo. Com os documentos nacionais em dia, como o RG, CPF e CadÚnico, a família já possui o amparo do governo brasileiro, as filhas estudam em escolas próximas à residência e todos já têm acesso aos atendimentos do Sistema Único de Saúde (SUS).

Da Venezuela para Minas Gerais

De Acordo com o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR) do Brasil, o maior êxodo de venezuelanos da história foi motivado pela crise econômica e humanitária que assola o país desde 2014. Expostos à violência, à falta do acesso aos serviços básicos e à violação dos direitos humanos, grande parte da população se viu obrigada a procurar abrigo e acolhimento em países vizinhos na América Latina.

Neste cenário, o Brasil é o quinto maior destino de acordo com dados da Agência das Nações Unidas (ONU). Para garantir a eles acolhimento e assistência emergencial na principal porta de entrada terrestre do país, que é o Estado de Roraima, o Governo Federal organiza a chegada de todos, busca contribuir na inserção social, econômica e apoiá-los na procura por emprego e moradia, por meio da Operação Acolhida.

Para auxiliar o grande contingente populacional em Minas Gerais, algumas das principais instituições e organizações que, oficialmente, estão envolvidas no acolhimento venezuelano atuam na Rede Acolhe Minas, que conta com a participação do ACNUR, da Organização Internacional para as Migrações (OIM), do Serviço Jesuíta a Migrantes e Refugiados (SJMR-BH), da Providens – Ação Social Arquidiocesana, da PUC Minas, dentre outras organizações religiosas, não governamentais e instituições de ensino.

Qualidade de vida para a população imigrante é foco em Contagem

Após passar por dificuldades de adaptação ao Brasil, Délis Flores hoje está inserida na comunidade | Foto: Raphael Calixto

A PUC Minas é a primeira Universidade do Estado a fazer parte da Cátedra Sérgio Vieira de Mello (CVSM), uma rede implementada desde 2003 pela Agência da Organização das Nações Unidas (ONU) para Refugiados. Por meio da CVSM, a Universidade promove diversas ações e atividades em prol do acolhimento e defesa dos direitos humanos da população imigrante do país.

De acordo com o Atlas Digital da Migração Internacional em Minas Gerais, o município de Contagem é o segundo destino mais procurado do estado, ficando atrás apenas de Belo Horizonte. Com esse cenário, a Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania se deparou com a necessidade de elaborar políticas públicas para esse grupo social.

Para contribuir nos mais diversos atendimentos aos imigrantes do município, o Campus PUC Minas Contagem compõe o Comitê Intersetorial da Política Municipal para a População Imigrante, representado pela Profª Drª Maria da Consolação Gomes de Castro, do Departamento de Ciências Sociais. Mesmo tendo sido o Comitê instituído em 2021, pelo Decreto 96, a participação da Universidade na questão dos imigrantes que residem na cidade é anterior a isso. “Nós trabalhamos com os imigrantes de Contagem desde 2015”, conta.

Segundo a professora, o envolvimento com esse grupo social no município começou com um projeto que ela e o Prof. Dr. Duval Magalhâes Fernandes desenvolveram pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (Fapemig). O projeto em questão era voltado para o diagnóstico do perfil dos imigrantes haitianos que chegaram em decorrência das oportunidades de emprego na época da Copa do Mundo de 2014.

Desde então, inúmeras ações voltadas para essa parcela da população já foram desenvolvidas em parceria com os órgãos municipais, como palestras, diagnósticos, capacitações e até a promoção de um festival de música, chamado “Migra Voz”, em parceria com a Secretaria de Educação.

Através dos diagnósticos realizados, a Profª Maria da Consolação aponta o motivo pelo qual os imigrantes escolhem o município para residência. “Eles moram em Contagem porque a moradia é mais acessível financeiramente. Foram atraídos também porque foi onde eles foram recebidos da melhor forma, com acesso às políticas sociais”, conta.

Esse é o caso da venezuelana Delis Flores, que chegou ao Brasil em março de 2022, encorajada a sair do seu país por uma amiga que buscava melhores condições de vida. “Perguntamos para o motorista do Uber onde seria mais econômico para nós morarmos e ele nos disse que Contagem era uma boa opção”, afirma. A partir desse momento, a vida da Delis foi se estabelecendo no município. Ela e sua amiga conseguiram moradia na região da Cidade Industrial. Porém, apesar da venezuelana considerar o país acolhedor com os imigrantes, ela ainda não se sentia bem. “Eu chorei muito nesse processo, não conseguia respirar. Não tinha dinheiro para voltar e eu queria ir embora”, conta.

Após muito tempo imersa nesse sentimento, em outubro de 2022, Delis decidiu procurar ajuda na Regional Industrial. Três semanas depois, ela recebeu um convite para uma assembleia com estrangeiros, das nacionalidades haitianas e venezuelanas. “Naquele momento fiquei feliz em ver que eles eram felizes”, aponta Delis sobre quando as coisas começaram a mudar. A partir deste marco, Delis foi eleita como uma das conselheiras da sociedade civil e a posse aconteceu no dia 14 de fevereiro deste ano. “Penso que realmente é Deus, porque eu não queria ficar, queria voltar. Quando decidi que ficaria, acabaram os problemas para mim. Comecei a respirar, é como se uma nuvem se afastasse. Então entendi que foi o que Deus queria”, afirma, após recordar como foi sua trajetória até aqui. Em seu país de origem, a venezuelana exercia a profissão de professora. A partir disso, surgiu uma oportunidade em Contagem para Delis fazer parte do Projeto Escola sem Fronteiras, como instrutora.

Atualmente, ela atua em várias escolas do município, acompanhando o processo de adaptação dos jovens imigrantes. “São crianças de várias nacionalidades: ucranianos, haitianos, venezuelanos, espanhóis, húngaros, de todas as partes do mundo”, afirma.

De maneira geral, Delis afirma: “A política pública do município de Contagem para a proteção dos imigrantes é algo único, vamos dizer que são órgãos [públicos] que vão diretamente nos abraçar e acolher”. Segundo a venezuelana, hoje em dia ela se sente feliz. Foi ajudada e agora pretende ajudar todas as pessoas que precisam também. “Esse município nos proporciona momentos de integração, acesso à educação, como nesse projeto em que estou trabalhando, temos acesso à saúde e ao que precisamos”, conta Delis sobre sua percepção a respeito de todas as ações realizadas para a população migrante em Contagem. Por esse senso de acolhimento ser tão presente, do ponto de vista da venezuelana, ela conclui: “A política principal desse país para os imigrantes é o amor”.

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