Quem diria que existe ciência por trás daquela voz amena, geralmente embaraçosa, que usamos ao falar com nossos melhores amigos de quatro patas? É o que sugere a dissertação Influência do Comportamento de Treinadores sobre as Respostas Comportamentais e Fisiológicas de Cães e Lobos-cinzentos Socializados, desenvolvida por Melissa Gabriela Bravo Fonseca, pelo Programa de Pós-graduação em Biologia de Vertebrados. A dissertação sugere que o tom de voz usado com cães influencia significativamente a forma como eles respondem às dinâmicas de treinamento. A dissertação é resultado de pesquisa desenvolvida em parceria com o Wolf Science Center, pertencente à Universidade de Medicina Veterinária de Viena, que se dedica ao estudo do processo de domesticação e evolução dos lobos selvagens até os cães de estimação.
Esse jeito tão característico de se comunicar com os cães, conhecido como Discurso Direcionado a Cães, pode ser considerado uma variação do que se convencionou chamar na Psicologia de Manhês, uma forma de linguagem com ritmo e entonação próprios, usada por mães para se dirigirem a seus bebês. Coincidência ou não, segundo a Profa. Dra. Angélica Vasconcellos, orientadora da dissertação, o processo de domesticação dos cães parece ter selecionado, ao longo do tempo, animais que mantêm, na idade adulta, características juvenis. “A seleção de características que facilitassem o contato com seres humanos pode ter contribuído para que cães preferissem vozes agudas, característica comprovadamente observada em animais jovens”, afirma a especialista, que também é professora do Departamento de Ciências Biológicas. Os mamíferos usam sinais acústicos para demonstrar estados emocionais em contextos específicos. “Por exemplo, os sons agudos, em geral, sugerem uma postura submissa ou uma disposição amigável, que lembra sons de filhotes, na tentativa de produzir um efeito calmante no receptor. Então, pressupomos que os cães possam se interessar e reagir de forma mais positiva a uma voz suave, no discurso direcionado, já que eles podem ter sido selecionados evolutivamente para isso”, completa.
Esses traços físicos e comportamentais, chamados de neotênicos, podem também ajudar a explicar o impulso motivacional para manter e cuidar de animais de estimação, afirma Melissa. “Estudos nessa área sugerem que o tamanho corporal menor, região facial encurtada, orelhas caídas, latir e brincar com frequência, por exemplo, são características de filhotes, que podem explicar a atração do homem por esses animais durante a domesticação, explica.
No dia a dia, o biólogo e adestrador comportamentalista Mário Augusto Mestre reforça as conclusões da pesquisa, já que, segundo ele, usar um tom mais suave faz o animal se sentir mais motivado. “E faz também com que os cães confiem mais rápido em mim, enquanto brigar e repreender traz medo e insegurança”, conta. Os cães, assim como outras espécies, são capazes de utilizar pistas visuais, olfativas e acústicas para avaliar o ambiente em que estão inseridos física e socialmente. “O tom de voz carrega várias informações acústicas que eles conseguem interpretar e pode indicar o estado de humor da pessoa”, explica a professora Angélica.
A pesquisa
Durante a pesquisa, nove lobos e nove cães sem raça definida, socializados com humanos a partir dos 10 dias de idade, foram submetidos a 270 sessões de Treinamento por Reforço Positivo (TRP). O TRP é um tipo de técnica de Condicionamento Operante baseada na associação entre o comportamento de um indivíduo e as consequências de realizá-lo, provendo, assim, a melhora em seu bem-estar em razão de um maior controle sobre o seu ambiente.
A pesquisadora observou a associação entre os comportamentos dos animais e as vozes dos treinadores em três entonações distintas. Foi constatado que, para falas em tom de voz repreensivo, a resposta dos cães esteve relacionada a sinais emocionais negativos, como redução do abanar de cauda e do tempo em que os animais passavam próximos do treinador. Já para as frases e expressões em tom suave, Melissa detectou uma correlação entre essa entonação e o aumento da atenção dos animais, e do tempo de permanência dos cães e lobos a menos de um metro do treinador, um indicativo de interesse dos canídeos pela dinâmica de treinamento realizada. “Também constatamos que, quanto maior a duração da fala agradável durante uma sessão, mais frequente era o abanar de caudas nas duas subespécies estudadas”, aponta Melissa.