Quando as barragens B-I e B-IV, localizadas na Mina Córrego do Feijão, em Brumadinho, se romperam, às 12h28 do dia 25 de janeiro de 2019, Lionete Feitosa Sousa não imaginou que teria sua vida tão impactada por aquele que seria o maior acidente de trabalho do Brasil e o segundo maior desastre ambiental do século. Mas, a montanha de 86 metros de altura com 12 milhões de metros cúbicos de rejeitos de minério a atingiu, mesmo estando a aproximadamente de 250 quilômetros de distância. Além das 272 vidas ceifadas, o desastre causou prejuízos ambientais e socioeconômicos incalculáveis. A avalanche de lama e resíduos tóxicos levou menos de 30 minutos para chegar ao Rio Paraopeba, contaminou cerca de 300 quilômetros do seu leito e atingiu mais de 20 municípios de sua bacia.
Lionete, proprietária de um restaurante às margens do remanso do rio em Retiro Baixo, distrito de Pompéu, viu o movimento da região minguar. Com a impossibilidade de se refrescarem nas águas do Paraopeba, os turistas sumiram – seus clientes também. “Eu vendia refeições e lanches, e dali eu tirava a minha renda. E, de repente, as pessoas não queriam mais vir para cá. Tive que fechar as portas”, conta. Sem fonte de renda, as dívidas se acumularam, seu nome foi negativado e os problemas viraram uma bola de neve. “Meu comércio foi tirado de mim. Esse desastre me afetou de várias formas, mas a pior parte foi essa”, afirma.
Foi quando os sintomas começaram a aparecer: irritabilidade, insônia, taquicardia, tremores. “Parecia que o meu coração ia sair pela boca. Eu achava que ia morrer”, descreve uma das muitas crises que teve. Mesmo com a insistência da família, o estigma de que psiquiatra é ‘médico de doido’ a impedia de buscar ajuda. “Eu não tenho filhos, mas sou aquela tia coruja que considera os sobrinhos como filhos. Decidi procurar ajuda profissional quando o meu sobrinho falou que eu não era mais a mesma e que sentia a minha falta”, recorda Lionete, que saiu do consultório médico com remédios para ansiedade e diagnóstico de depressão.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que cerca de 3% da população mundial tenha sofrido de Transtorno de Estresse Pós-traumático (TEPT) em algum momento da vida. Após desastres, a prevalência pode chegar a 75%. Com eventos ambientais extremos cada vez mais frequentes devido à crise climática, as vítimas – diretas e indiretas – também crescem em larga escala. Essa angústia já ganhou até nome: Ecoansiedade ou Ansiedade Climática. Os termos foram descritos pela American Psychological Association (APA), a Associação Americana de Psicologia, como medo crônico da destruição ambiental.
O Rio Grande do Sul, por exemplo, registrou 18 mil afastamentos do trabalho por ansiedade e depressão em 2024, de acordo com dados do Ministério da Previdência Social. A enchente que atingiu o Estado naquele ano, considerada a maior tragédia climática da região, fez 183 vítimas fatais e está diretamente associada ao recorde de afastamentos.

Iniciativas pedagógicas
Demandas relacionadas à saúde mental provenientes de questões socioambientais levaram a Faculdade de Psicologia da PUC Minas (Fapsi) a incluir em seu Projeto Pedagógico atividades obrigatórias e extracurriculares que explorassem o tema. “As atividades na Faculdade relacionadas à Psicologia Socioambiental estão presentes há pelo menos 20 anos, mas em boa parte desse período ocorreram como discussões em disciplinas e estágios que tangenciavam o tema. O marco histórico mais expressivo ocorreu em 2017, na grade curricular do Curso de Psicologia do Campus Lourdes, que indicou entre as disciplinas obrigatórias a Psicologia das Emergências e Desastres. Além disso, desde 2024, a Fapsi está redesenhando os Projetos Pedagógicos dos cursos de todos os campi e a discussão relativa à temática socioambiental será obrigatória em todos os cursos”, afirma a Profa. Dra. Mirelle França Michalick-Triginelli, diretora da Fapsi.
Na disciplina, as aulas incluem estudos de caso, discussões sobre legislações e protocolos internacionais, simulações de atendimento psicológico em situações de crise e emergência e metodologias ativas para proporcionar experiências práticas e o desenvolvimento de habilidades essenciais para a atuação nesse campo. “O impacto das mudanças climáticas, o crescimento urbano desordenado e os eventos ambientais extremos exigem uma visão ampliada sobre as interações entre indivíduos, comunidades e o meio ambiente. Essa perspectiva permite o desenvolvimento de estratégias de prevenção, resposta e recuperação emocional, considerando tanto a construção social do desastre, como os transtornos mentais de curto, médio e longo prazos e os efeitos no bem-estar e qualidade de vida das populações afetadas”, explica a Profa. Dra. Eliana Márcia Martins Fittipaldi Torga, docente da disciplina Psicologia das Emergências e Desastres.
Além da disciplina, a Fapsi promoveu, de 2021 a 2024, sete palestras pelo canal no YouTube, cinco minicursos, dois grupos de estudo e dois estágios curriculares, além de conferências, mesas-redondas, sessões de cinema comentado, cursos de formação para professores e a capacitação em primeiros socorros psicológicos, realizada durante o Simulado de Incidente com Múltiplas Vítimas (Simuv), organizado pelos Cursos de Medicina e Enfermagem dos campi Betim e Contagem. Também estão em fase de desenvolvimento um projeto de extensão e um terceiro grupo de pesquisa.
Muitas dessas atividades foram lideradas pela professora Tatiane Melo, pesquisadora na área de Gestão de Riscos e Desastres, tendo atuado junto aos atingidos pelo desastre ambiental de Brumadinho e no contexto de reparação no Rio Paraopeba. “A governança de desastres é composta por diversos atores, e a contribuição da sociedade civil, organizada ou não, é muito importante, justamente pelo conhecimento que ela possui das pessoas e do território afetado. E todas as ações têm como objetivo contribuir para o auxílio às vítimas”, explica a docente.
Por meio dessa articulação em rede, Lionete chegou à ajuda que tanto precisava. “Eu fazia parte de um grupo chamado Guerreiras, que era para auxiliar as pessoas atingidas na região. Nós começamos a procurar colaborações, principalmente para a questão da Saúde Mental. Por meio do Instituto Guaicuy – Assessoria Técnica Independente (ATI) que atua na região – soubemos que a PUC oferecia esse atendimento e fomos tentar. Foi assim que conheci a professora Tatiane e conseguimos essa parceria”, conta.
A parceria à qual ela se refere é o acompanhamento psicológico individual de pessoas atingidas pelo rompimento da barragem, uma das vertentes do estágio em Psicologia de Emergências e Desastres, coordenados por Tatiane. Durante 2024, a atividade acompanhou 30 pessoas atingidas, residentes das cidades de Felixlândia, Morada Nova de Minas, Pompéu e Três Marias. Os atendimentos eram realizados de forma on-line, para poupar do deslocamento os moradores da zona rural. Lionete foi uma delas. “Eu era atendida duas vezes por semana. Cheguei a ser atendida até três vezes na mesma semana”, recorda.
Para a comerciante, os atendimentos foram fundamentais para que ela se reerguesse. “Eu não converso sobre mim com qualquer um, e a minha psicóloga conseguiu. Ela foi tirando camada por camada para que eu conseguisse desabafar. Daí eu comecei a fazer o nosso tratamento, o que me ajudou bastante. Não tenho palavras para agradecer a cada um dos profissionais que nos atenderam”, afirma Lionete.
Raquel Bellumat foi a estagiária responsável pelos atendimentos de Lionete. Ela utilizou a abordagem Terapia Cognitivo-comportamental (TCC) para “remover as películas” da mente de Lionete e ajudá-la a regular suas emoções e comportamentos. “No início, foi um desafio porque ela é uma pessoa muito fechada e que tem certa dificuldade em expressar seus sentimentos. Com o tempo, fui conquistando sua confiança, mostrando o nosso trabalho, ela se soltou e teve uma evolução significativa”, relata a egressa do Curso do Campus São Gabriel. “Depois que me formei, ela quis continuar fazendo o acompanhamento psicológico comigo. É muito satisfatório você mostrar para um paciente que ele pode superar um trauma e viver, não apenas sobreviver”, completa.
A história de Lionete, assim como de tantas outras vítimas de desastres ambientais, está longe de ter um desfecho. Ela perdeu em primeira instância o processo que moveu contra a mineradora responsável pelo crime ambiental. Sem recursos financeiros para custear os gastos com advogados, desistiu da causa. “Se você mandasse qualquer um dos atingidos escolher entre o dinheiro ou o nosso rio limpo, quem mora aqui e vive da pesca, do comércio, do gado, todo mundo falaria a mesma coisa: nós queremos o rio de volta. Então, nós precisamos mesmo de ajuda para caminhar, senão a gente enlouquece”, lamenta.
A professora Tatiane Melo reforça que uma pessoa atingida por um desastre não é apenas um CPF a ser indenizado, mas alguém que teve sua vida, sua história e, em alguns casos, até a sua identidade destruída. “Nesse cenário, a Universidade tem um papel central na conscientização sobre esse assunto, pois ela produz conhecimento, constrói visões de mundo e forma o futuro. Que não só a PUC Minas, mas todas as instituições de ensino tenham a noção de que esse tema não é apenas mais uma linha de pesquisa interdisciplinar, mas sim um contexto mais amplo e complexo que envolve a nossa sobrevivência”, reitera.

Práticas coletivas
Um contexto amplo e complexo não é resolvido com ações isoladas e pontuais. Assim como o atendimento psicoterapêutico individual pode salvar uma pessoa, intervenções coletivas ajudam a recuperar o meio ambiente e a sociedade. É o que observa a professora Mirelle França sobre a abrangência da Psicologia Socioambiental. “Há ações com perspectivas psicossocial e política e, como tal, envolvem práticas coletivas de sensibilização e mobilização de diferentes atores da comunidade, sejam eles as pessoas atingidas, os profissionais de saúde e os representantes do poder público. Assim, o foco na mitigação de desastres se associa à busca pela promoção de comportamentos pró-ambientais, o que traz mais abrangência para as perspectivas de intervenção e amplia o número de pessoas que podem ser beneficiadas”, afirma a diretora da Fapsi.