Libras na mediação

Monografia destaca importância da Língua Brasileira de Sinais como ferramenta de comunicação inclusiva na resolução consensual de conflitos
Rogério Soares Guida: “O Judiciário brasileiro precisa ampliar a capacitação de mediadores que possam promover a inclusão social das partes surdas” | Foto: Bruno Timóteo

“Quando as partes mediadas são deficientes auditivas, é imprescindível inserir na sessão de mediação um espaço comunicativo diferenciado, por meio de Libras, o que garantirá a compreensão das questões apresentadas e dos atos realizados”. A defesa está na monografia do então aluno surdo Rogério Soares Guida, do Curso de Direito, que recebeu o primeiro lugar no prêmio de Monografia-Destaque, da Faculdade Mineira de Direito. Intitulado A Importância da libras como Ferramenta de Comunicação Inclusiva na Mediação, o estudo foi orientado pela professora Anne Shirley de Oliveira Rezende Martins, chefe do Departamento de Direito e coordenadora do Curso no Campus Coração Eucarístico. “Assim, com base nas leis aplicáveis que já estão em vigor, o que falta, na prática, é que se tenha a capacitação e formação em Libras, a mediadores, conciliadores, julgadores e intérpretes, para garantir essa comunicação mais eficaz aos jurisdicionados de forma célere e harmônica”, considera Rogério Guida, que foi assistido durante todo o Curso de Direito pelo Núcleo de Apoio à Inclusão (NAI).

O estudante ressalta que o processo não é apenas o de descobrimento de uma nova forma comunicativa da Libras, mas da criação de um novo método acessível das partes e operadores de Direito e mediadores de audiências.

O trabalho teve como objetivo apresentar a mediação de Libras Jurídica como uma ferramenta comunicativa da Língua Brasileira de Sinais para dar ênfase ao papel de mediador como conhecedor de segunda língua. Foi realizada pesquisa documental de obras e leis recentes que abordam o assunto doutrinário e comparativo entre o Código de Processo Civil, Lei de Mediação e Lei Brasileira de Inclusão, com a necessidade da capacitação dos operadores de Direito em relação ao uso de Libras no contexto jurídico, proporcionando, assim, a possibilidade do instrumento do uso de Libras nas sessões de mediação das partes surdas usuárias de Libras de forma mais célere na solução de conflitos.

“O principal desafio é implementar ações concretas nas sessões de mediação para a profissionalização do intérprete e do tradutor de Libras/Português no contexto de direito linguístico no Poder Judiciário. Um movimento para que o Poder Judiciário visualize a parte surda como cidadã com seus direitos linguísticos e propicie qualidade nos serviços de tradução e de interpretação de línguas de sinais ofertados na sessão de mediação”, observa Rogério Guida.

O ex-aluno cita no estudo que a realização de uma sessão de mediação com uso de tradução em Libras é um exemplo e mostra que a Justiça deve atender a necessidade de todos os seus usuários. “A autocomposição precisa estar ao alcance de todos. O Judiciário brasileiro precisa ampliar a capacitação de mediadores que possam promover a inclusão social das partes surdas”, defende Rogério Guida.

Para o autor, Santos, citado no trabalho, a “questão a ser pautada atualmente pelo sistema de justiça, especialmente no que tange à sua efetividade jurisdicional e celeridade processual, não depende apenas dos intérpretes e tradutores, mas também do conhecimento dos próprios operadores do direito no que tange aos direitos linguísticos das pessoas surdas e do reconhecimento dessas pessoas que acessam o Judiciário”.

Rogério Guida diz que o desconhecimento do Poder Judiciário em relação ao profissional intérprete e tradutor de Libras é um dos elementos de destaque notado pelos profissionais porque as dificuldades tradutórias englobam elementos como a questão da imparcialidade na interpretação e na tradução, a falta de revezamento ou de equipes ou uma dupla a cada 15 minutos, uma vez que o intérprete e o tradutor trabalham sozinhos, sem o auxílio da equipe, ou uma dupla durante a sessão da mediação.

A realização de uma sessão de mediação com uso de tradução em Libras, prossegue Rogério, é um exemplo e mostra que a Justiça deve atender a necessidade de todos os seus usuários. “A autocomposição precisa estar ao alcance de todos. O Judiciário brasileiro precisa ampliar a capacitação de mediadores que possam promover a inclusão social das partes surdas”.

De acordo com o Conselho Nacional de Justiça, o mediador é uma pessoa selecionada para exercer o múnus público de auxiliar as partes a compor a disputa. No exercício dessa importante função, ele deve agir com imparcialidade e ressaltar às partes que ele não defenderá nenhuma delas em detrimento da outra – pois não está ali para julgálas e sim para auxiliálas a melhor entender suas perspectivas, interesses e necessidades. Ainda segundo o CNJ, caso alguma parte tenha deficiência auditiva, poderá o mediador usar a Libras como segunda língua, o que facilita a comunicação não verbal.

Para Rogério, as estruturas para a resolução de conflitos são diversas e criativas, existindo técnicas que se utilizam de instrumentos alternativos para a resolução de conflitos familiares. Por isso, a mediação tem como elementos as partes e um terceiro neutro e imparcial, que ajuda na conversa por meio de técnicas de resolução de conflitos.

“Por isso, a comunicação verbal e a não verbal são muito importantes para o desenvolvimento do procedimento e para a resolução adequada de disputas, pois ajudam o mediador a verificar os interesses das partes envolvidas no conflito e as possibilidades de se alcançar um acordo”, observa o ex-aluno.

A principal motivação para o desenvolvimento da pesquisa nasceu na experiência vivida pelo ex-aluno nas práticas de estágio do NPJ Coração Eucarístico, em atendimento a partes mediandas deficientes auditivas, demonstrando a importância do uso da libras para a promoção da inclusão e da autocomposição a pessoas com deficiência.

De acordo com Rogério, “o atual contexto jurídico brasileiro traz limitações à efetividade e concessão dessas práticas às pessoas surdas, haja vista que há falta de mediadores formados na Língua Brasileira de Sinais, o que implica a morosidade processual e problemas estruturais no processo de formação dos acordos judiciais envolvendo pessoas surdas”.

Rogério Guida cita também o autor Tartuce, para quem “a mediação consiste na atividade de facilitar a comunicação entre as partes para propiciar que estas próprias possam, visualizando melhor os meandros da situação controvertida, protagonizar uma solução consensual. A proposta da técnica é proporcionar um outro ângulo de análise dos envolvidos: em vez de continuarem as partes enfocando suas posições, a mediação propicia que elas voltem sua atenção para os verdadeiros interesses envolvidos”.

Entende-se como Língua Brasileira de Sinais (Libras) a forma de comunicação e expressão em que o sistema linguístico de natureza visual-motora, com estrutura gramatical própria, constitui um sistema linguístico de transmissão de ideias e fatos, oriundos de comunidades de pessoas surdas do Brasil, segundo parágrafo único do art. 1º da Lei de Libras n. 10.436/2002.

A professora Anne Shirley considera que, com a participação de Rogério nesta disciplina, um novo desafio surgiu nas atividades do SAJ, o de propor a inauguração do novo modelo de atendimento, incluindo verdadeiramente os surdos nas práticas de resolução consensual de conflitos. “Para isso, precisávamos inaugurar uma capacitação que também abordasse o uso de Libras e poder realizar uma mediação com a participação de intérpretes. A primeira mediação com interpretação em libras no SAJ foi realizada pelo Rogério, sob minha supervisão, com partes mediandas também surdas, acompanhadas pelos intérpretes do NAI PUC Minas”.

Passo importante

Professora Anne Shirley de Oliveira Rezende Martins, chefe do Departamento de Direito e coordenadora do Curso no Campus Coração Eucarístico | Foto: Raphael Calixto

“Foi um passo muito importante. A iniciativa promoveu a inclusão de pessoas surdas, trazendo-lhes um momento único de igualdade e dignidade, pois se interessavam em buscar o diálogo, mas não tinham como fazê-lo nos tribunais, já que não dispunham de mediação com assistência em Libras”. No curso, prossegue a professora Anne, “buscamos outra maneira de conceber a construção do conhecimento jurídico, articulando o conhecimento teórico com a resolução de problemas e priorizando a cultura do diálogo, com a plena inserção do aluno no cenário sócio geográfico em que se forma, sem perder a dimensão global exigida, respeitando a diversidade e o pluralismo cultural”.

A professora Anne diz que foi um desafio para ela. “Eu sabia que para o surdo a escrita apresentava irregularidades morfossintáticas que coincidem com construções próprias da língua de sinais. Os pesquisadores ouvintes usam quase a mesma estrutura morfossintático-semântica para o português falado e escrito, relação essa não estabelecida pelos pesquisadores surdos entre Libras e a escrita. Devo confessar, já emocionada, que foi uma das maiores experiências que vivi, não só como professora, mas sobretudo como aprendiz de uma nova língua que me aproximasse do bem maior que temos: o humano! Realmente, na PUC Minas, ‘o conhecimento transforma’.”

Tiago Soares Siqueira acompanhou uma das sessões do SAJ, que contou com ambas as partes surdas, o que levou Rogério a atuar como mediador, enquanto o intérprete auxiliava aqueles que não compreendem as linguagens de sinais. “Foi uma experiência muito interessante e oportuna, pois a inclusão é um dos valores mais caros ao ambiente universitário”.