Design ou exclusão?

Alunas do Curso de Direito realizam trabalho de extensão sobre a arquitetura hostil em Belo Horizonte
Marina, Sophia e Ana Flávia: interesse pela temática da arquitetura hostil surgiu a partir da participação em projetos voltados para pessoas em situação de rua | Foto: Guilherme Simões

Imagine que, ao caminhar pelas ruas, você se sinta cansado e precise se sentar um pouco para recuperar a disposição de continuar o trajeto; mas, ao escolher um local para a pausa, se depare com barras de ferro que impedem as pessoas de se aproximarem daquele espaço. Essa situação ocorre cotidianamente. Pinos de ferro, paisagismo com plantas espinhosas, grades com ponteiras, blocos de concreto, bancos repartidos, detalhes estéticos em praças. São muitos os exemplos da chamada arquitetura hostil, que muitas vezes passa desapercebida pela maioria das pessoas, pois pode parecer uma opção estética, de design. Para as alunas do Curso de Direito da PUC Minas Praça da Liberdade, Ana Flávia de Paula Pereira, Marina Caldeira Brandes e Sophia Araujo Orro Joviano dos Santos, “a arquitetura hostil é uma abordagem controversa no design urbano. Enquanto alguns veem a necessidade de medidas defensivas para garantir a segurança pública, outros argumentam que elas excluem populações vulneráveis e fragmentam os espaços urbanos”, explicam.

O interesse das alunas por estudar esse tipo de abordagem surgiu a partir da convi­vência com pessoas em situação de rua no projeto de Extensão Klinica: direitos huma­nos e cidadania, além de atuarem em um projeto social voltado para esse público. Também foram importantes as leituras de artigos sobre o tema, os debates na Assembleia Legislativa de Minas Gerais sobre o projeto de lei municipal que estava sen­do votado em Belo Horizonte e que afetaria o uso da cidade, a temática proposta pelo Mosaico, evento da PUC Minas Praça da Li­berdade que integra ações sociais, pesquisas e extensão e debates sobre inovação. “Vendo a angústia das pessoas em situação de rua e, ao mesmo tempo, o projeto de lei em votação, percebemos que existia um interesse em tirar essa população de cena, mas não para solucionar a questão social propriamente dita e tão complexa. A ideia era eliminar essas pessoas dos espaços”, explica Ana Flávia. “O projeto de lei, após diversos debates e participação de movimentos sociais de assistência à população de rua, foi arquivado”, explica o o Prof. Dr. Ricardo Guerra Vasconcelos, orientador das alunas no projeto Arquitetura Hostil: Um obstáculo ao Direito à Cidade, apresentado no Mosaico.

“As discussões do grupo iniciaram a partir da leitura de artigos que afirmam que a arquitetura hostil perpetua a exclusão e cria obstáculos nas cidades, dificultando o convívio e a inclusão de diferentes grupos sociais”, explica o professor Ricardo. “É um movimento que deixa a cidade menos acessível às pessoas vulneráveis ou às pessoas marginalizadas”, completa Ana Flávia. “Em conversa com uma mulher em situação de rua, perguntamos qual direito ela acreditava que a população de rua tem. Ela respondeu que nenhum, pois não são vistos; que dirá ter direito a alguma coisa. E, na arquitetura hostil, se você observar um simples braço de um banco em uma praça, você naturalmente vai pensar que aquele detalhe é para apoio e conforto do usuário. Você não imagina que alguém poderia estar dormindo ali e que colocaram o braço para impedir isso”, detalha Sophia.

A arquitetura hostil seria uma abordagem na contramão do debate contemporâneo do uso do espaço urbano, que reflete uma preocupação crescente de criar cidades mais inclusivas, sustentáveis e acessíveis a todos os cidadãos. Ela seria uma forma de controlar o uso dos espaços por pessoas em situação de rua, skatistas, jovens, vendedores ambulantes, idosos, pessoas com mobilidade reduzida. “Quanto mais vulneráveis as populações, mais elas sofrem com essa arquitetura. E o sofrimento maior é o das pessoas em situação de rua”, ressalta o professor Ricardo.

Para as alunas, a pesquisa possibilitou a identificação e a análise de pontos de arquitetura hostil em Belo Horizonte. Além disso, o projeto evidenciou a necessidade da promoção de mudanças no espaço urbano, com a projeção de áreas públicas acessíveis, para então garantir o direito à cidade. De acordo com dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), de 2023, o Brasil tem mais de 220 mil pessoas em situação de rua, sendo que, em 2013, essa população era de 21 mil indivíduos. “O projeto de extensão Klínica e o projeto apresentado no Mosaico abriram muito meu olhar para essa situação da arquitetura hostil. Passamos a percebe também que essa população é invisível. Precisamos de um projeto de extensão para enxergar melhor essas pessoas, para ver o lado delas”, explica Sophia.

A lei federal nº 14.489, aprovada em 2022, conhecida como Lei Padre Júlio Lancellotti, altera o Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257, de julho de 2001), e veda o emprego de técnicas construtivas hostis em espaços livres de uso público. “A partir da aprovação dessa lei, o desafio que fica é o processo de conscientização e fiscalização municipal”, pontua o professor Ricardo, que acredita que essa lei deva sofrer uma regulamentação para disciplinar a fiscalização do espaço municipal.

“Ter realizado o projeto gerou um incômodo e nos tirou da zona de conforto. “Além de nos fazer pensar no que podemos ser diferentes, qual olhar passamos a ter em direção a essas pessoas nesse lugar de falta de direitos? Isso nos mostrou que podemos nos tornar seres humanos melhores”, explica Ana Flávia. “O processo de humanização é missão da PUC Minas. A gente trabalha muito com essa preocupação de sensibilizar, de desconstruir, de trazer uma percepção diferente”, completa o professor Ricardo.

A conclusão do projeto vai ao encontro da necessidade de abordar essa discussão sobre arquitetura hostil em uma conversa mais ampla sobre justiça social, equidade e inclusão. Dessa forma, pretende-se garantir que as cidades atendam às necessidades de todos os seus habitantes, independentemente de sua origem, situação financeira ou circunstâncias pessoais. Somente assim será possível avançar na criação de espaços urbanos verdadeiramente inclusivos, seguros e acolhedores para todos, onde os direitos à cidade são iguais indistintamente.

Prof. Dr. Ricardo Guerra Vasconcelos: “A gente trabalha muito com essa preocupação de sensibilizar, de desconstruir, de trazer uma percepção diferente” | Foto: Guilherme Simões