Imagine um bairro periférico ou, até mesmo, central, porém desvalorizado e habitado por pessoas de baixa renda. Agora imagine que, por algum motivo, pessoas com poder aquisitivo elevado passem a se mudar para essa região. Com a chegada de uma classe mais favorecida economicamente, esse bairro começa, pouco a pouco, a atrair comércio, infraestrutura, investimento e desenvolvimento, proporcionando uma transformação do espaço com diversos benefícios que antes não existiam ali. De repente, esse bairro já não tem mais as características de um espaço popular, mas, sim, um bairro nobre. Com toda a alteração na paisagem urbana, muda-se também o custo de vida na região. Esse novo orçamento é condizente com o padrão de vida desses novos moradores, mas, os antigos já não conseguem mais se sustentar ali. Com renda incompatível com o custo de viver naquela região, a solução é se mudar. Você está diante de um fenômeno socioespacial chamado gentrificação.
A palavra vem da expressão inglesa gentrification, que, por sua vez, vem de gentry, que quer dizer nobreza. Gentrificação, portanto, pode ser definido como enobrecimento do espaço: um conjunto de transformações que ocorre, com ou sem intervenção governamental, e provoca o êxodo da população local por fatores socioeconômicos. A expressão foi utilizada pela primeira vez na década de 1960, pela socióloga britânica Ruth Glass, ao analisar as transformações imobiliárias em determinados distritos londrinos, quando pessoas de status mais elevados começaram a se mudar para locais onde antes só moravam trabalhadores. Esse processo elevou o preço imobiliário do local e acabou expulsando os antigos moradores: a classe operária.
Esse fenômeno, no entanto, não é exclusivo de Londres e nem das capitais europeias. O conceito foi ganhando em cada local significados e aplicações diferentes, e acontece no mundo todo, inclusive no Brasil. Em Belo Horizonte, processos de expansão urbana são notados em diversos bairros da região Centro-Sul, como o Belvedere, que modificou não só o seu território, mas atravessou a fronteira intermunicipal, atingindo a vizinha Nova Lima.
Há, no entanto, um bairro tradicional que resiste a essa tendência: o Santa Tereza. Reduto do Clube da Esquina e da boemia, o local é considerado o berço cultural da capital mineira e carrega em suas ruas e praças o tradicionalismo e o saudosismo de uma Belo Horizonte cantada por Milton Nascimento, Lô Borges e Flávio Venturini. O charmoso bairro da zona Leste resiste ao crescimento imobiliário – e, consequentemente, à gentrificação – sofrido pelos demais bairros centrais e/ou nobres da cidade.
Essa peculiaridade despertou o interesse da professora Luciana Teixeira de Andrade e da sua aluna de mestrado Lívia de Assis. A professora do Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da PUC Minas é pesquisadora do Observatório das Metrópoles, grupo de pesquisa que integra os Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), que estuda as 15 principais regiões metropolitanas do país – entre elas, a Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH) – e desenvolveu pesquisa que investiga as relações entre as políticas urbanas e a mobilidade residencial com os processos gentrificadores do espaço, a partir do estudo de dois bairros da cidade de Belo Horizonte: Santa Tereza e Anchieta. O estudo resultou no artigo Urban policies, mobility and gentrification in two neighbourhoods of Belo Horizonte (Políticas urbanas, mobilidade e gentrificação em dois bairros de Belo Horizonte), escrito em parceria com a professora Jupira Mendonça, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), e publicado na Revista Sociologia e Antropologia, e na dissertação Mudanças Residenciais e comerciais: um estudo sobre processos de renovação urbana no bairro Anchieta, Belo Horizonte, defendida no Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da PUC Minas.
Apesar de terem sido formados em diferentes períodos, os dois bairros compartilham a condição de urbanizados, com boa infraestrutura, próximos do Centro da cidade e com ocupação predominante da classe média. As semelhanças, no entanto, param por aí. Se o Santa Tereza é, de certa forma, protegido pelo seu patrimônio histórico e cultural, os bairros da Centro-Sul, entre eles, o Anchieta, são regidos pela lógica financeira. Sobretudo, do mercado imobiliário. “Não há nada especial com o Anchieta, como há com o Santa Tereza. Poderia ser São Pedro, Santo Antônio, Cruzeiro. Ou seja, ele é parte desse grupo”, reforça, ao pontuar que a homogeneidade socioeconômica da região se deve ao fato de ter sido ocupada pelos grupos de alta renda, com processo de expulsão dos grupos de menor poder aquisitivo. “Esse é o processo histórico da ocupação de Belo Horizonte. Não é algo recente. O que é recente é que cada vez ele se elitiza mais. Na Zona Sul você tem uma concentração de imóveis de alto luxo. Se você derruba uma casa e constrói um edifício, então você começa a atrair cada vez mais esses grupos de alta renda e vai levando à saída dos grupos de menor renda nessa região”, exemplifica.
Para comparar os processos, foram utilizados vários tipos de dados, quantitativos e qualitativos, como entrevistas com moradores e comerciantes; visitas ao bairro para observar a sua dinâmica; dados do Censo Demográfico sobre domicílios e moradores; da Pesquisa Origem-Destino, realizada pela Secretaria de Estado de Infraestrutura e Mobilidade (Seinfra) e pela Agência de Desenvolvimento da Região Metropolitana de Belo Horizonte (Agência RMBH), que identifica a mobilidade residencial nos bairros; e dados da Prefeitura sobre a produção imobiliária e políticas públicas urbanas vigentes.
Os resultados mostram como são distintos os processos nos dois bairros. Em Santa Tereza, o processo de gentrificação foi barrado, muito em parte, pela mobilização dos moradores, que pressionaram o poder público para a proteção do bairro, o que resultou na aprovação como Área de Diretrizes Especiais (ADE), em 1996, e, em 2015, no processo de Tombamento pelo Conselho Deliberativo do Patrimônio Cultural do Município de Belo Horizonte de cerca de 300 imóveis entre casas, igrejas, praças e estabelecimentos, o que rendeu ao bairro o título de patrimônio da cidade, e que impõe diversas restrições para evitar a verticalização do espaço e descaracterização da região. “Essas políticas conseguiram fazer com que o bairro se mantivesse como ele é. É emblemático porque a população se organizou para que o bairro não fosse transformado. E aí conseguiram barrar essa entrada do capital imobiliário”, afirma Luciana. A socióloga também pontua que não foi observada mudança significativa nem de entrada de grupos com maior status e nem expulsão de grupos de menor status. “Quem entra tem o status muito parecido com o status das pessoas que predominam lá. Então, não pode falar que houve processo de gentrificação”, conclui.
Já no Anchieta não há nenhum tipo de proteção urbanística especial, e a maior liberalidade das políticas urbanas, que não suscitou nos moradores reações organizadas, tem permitido essa renovação. O bairro vem passando por um processo acelerado de substituição de suas antigas residências por edifícios de apartamentos, processo denominado gentrificação, por novas construções. Esse tipo de dinâmica urbana é o que o aproxima de vários outros bairros localizados na mesma região, a Centro-Sul, onde se concentram os estratos de renda média alta.
Relação do habitante com a cidade
Luciana Andrade observa que a história de Belo Horizonte é marcada pela segregação socioespacial, com a expulsão da população com menores recursos para regiões cada vez mais longínquas. Essa é uma característica do desenvolvimento das cidades latino-americanas que, de modo geral, se baseiam no modelo centro-periferia de segregação socioespacial. A socióloga observa, porém, que essa mobilidade forçada rompe com elos sociais e espaciais e, consequentemente, com parte da memória afetiva das pessoas. “É um processo perverso que priva um grupo, à medida em que ele tem que sair de onde residia, de toda uma vida social construída naquele lugar. Vida que é feita de relações de vizinhança, de apropriação do espaço, ou seja, de parte da identidade que construímos com a nossa cidade”, pontua. Ela também critica os discursos contrários, que argumentam que as políticas antigentrificadoras congelam a cidade. “Não se trata disso. A cidade é obviamente algo em constante transformação. O problema é quando essa transformação tem como objetivo o lucro de alguns, os empreendedores imobiliários, e o bem-estar de outros, os novos moradores, em prejuízo dos menos favorecidos economicamente”, analisa.
Embora a gentrificação seja, conceitualmente, um processo residencial, esse fenômeno afeta outros aspectos, como o comercial, já que interfere na economia local, e nos usos dos espaços públicos que, por definição, são espaços abertos a todos. Luciana ressalta, porém, que na prática essa abertura não se efetiva. “Essas ocupações têm relação direta com o poder de certos grupos, mas também com determinadas políticas públicas que não levam em conta os hábitos e costumes de um grupo social. Por isso sempre falamos que o espaço público é um lugar de conflitos e de poder. Se um grupo passa a predominar em um espaço ele pode gerar constrangimentos para as práticas e usos de outros grupos, assim como pode exigir do poder público medidas gentrificadoras do espaço público, proibindo ou dificultando certos usos que têm relação com o outro grupo”, explica.
Novamente, o Santa Tereza foge à regra. “É muito comum que os bairros de classe média tenham políticas segregacionistas e elitistas, e o Santa Tereza, não”, observa Luciana. A forte influência da comunidade local colaborou, inclusive, para que o Quilombo Souza, também conhecido como Vila Teixeira Soares, recebesse o título de Patrimônio Cultural Imaterial da cidade. O processo foi iniciado em 2019, logo após o reconhecimento do local como território quilombola pela Fundação Palmares, e o registro foi concedido no ano passado, às vésperas do Dia da Consciência Negra, aprovado por unanimidade pelos integrantes do Conselho do Patrimônio Cultural, durante sessão do Conselho Deliberativo do Patrimônio Cultural de Belo Horizonte (CDPCM-BH). Este foi o quarto quilombo urbano a receber o registro imaterial do CDPCM-BH.
A professora Luciana Andrade, membro do Conselho, foi a responsável pelo parecer que garantiu o tombamento. “Tais políticas públicas foram resultado da gestão municipal, mas também, e muito importante, da organização dos moradores. Ou seja, a gentrificação não é um fenômeno inexorável. Ela pode e, frequentemente, tem encontrado resistência com políticas que propiciam uma cidade mais justa, e não uma cidade-mercadoria”, pondera.
Quilombo urbano
A história do Quilombo Souza é tão antiga quanto a do bairro. Sua origem vem de Petronillo de Sousa e Elisa da Conceição, que se casaram em 1902 e vieram para a capital mineira em 1909, assim como muitos trabalhadores, sobretudo afro-brasileiros, em busca de oportunidades. Os Souzas adquiriram um terreno, onde atualmente se encontra o bairro de Santa Tereza, com registro de compra datado de 1923, presenciando e contribuindo para o processo de urbanização do bairro ao longo dos anos. Atualmente, a comunidade localizada na rua Teixeira Soares abriga 14 famílias e 35 pessoas, que ainda preservam a cultura e os saberes de seus ancestrais.
Gláucia Cristine, líder do quilombo, afirma que o reconhecimento como patrimônio cultural e imaterial é uma forma de resistência e luta. “Conhecíamos as nossas origens e nossa história. Mergulhamos no passado, em busca dos documentos necessários para o nosso reconhecimento e, assim, manter a preservação do nosso território, que estava sob forte ameaça”, conta, ao afirmar que o registro é uma forma de resguardar os direitos do grupo, e que, para adquiri-lo, recebeu a contribuição da Associação Comunitária do Bairro Santa Tereza (ACBST) e do Movimento Salve Santa Tereza. “Esse apoio foi muito importante, pois, foi através dos encontros para a votação da ADE que houve o despertar que o nosso modo de vida era de uma comunidade quilombola e isso seria um dos meios para nossa defesa e resistência contra o despejo”, explica.
Pedro Barros, presidente da ACBST, conta que a articulação para reverter a ordem de despejo que ameaçava a comunidade foi um esforço conjunto da associação com alguns vereadores, assessores e vizinhos. “Recebemos o convite para uma reunião com a Polícia Militar, que afirmava que o terreno já havia sido destinado aos antigos donos. A partir daí acreditávamos que os moradores seriam despejados. Contudo, fomos procurados por vizinhos ligados a movimentos sociais de luta por moradia que informaram que a situação jurídica da posse dos terrenos não estava determinada. Daí passamos a conhecer a história destes vizinhos e sua identidade como grupo descendente de escravos e suas características quilombolas e abraçamos essa luta, dando apoio para a construção de toda a documentação, relatórios, materiais e ações necessárias para este merecido título”, conta.
Gláucia ressalta a boa convivência da comunidade quilombola com os demais moradores do bairro, apesar de sofrerem preconceitos por parte de alguns habitantes. “Estar na minha comunidade, que é patrimônio cultural e imaterial, em Santa Tereza, que também é patrimônio, é muito importante para que a gente possa ter os nossos direitos garantidos, preservados, e que a gente tenha essa convivência harmônica com o bairro. Santa Tereza é um bairro tradicional e nós somos uma comunidade tradicional, porque ser quilombo é ter uma cultura tradicional. Então, a gente se sente em casa”, afirma.
Articulação comunitária
Pedro Barros, que preside a ABCST há três anos e foi membro por dois anos da gestão anterior, explica que a Associação atua buscando respostas do poder público para demandas coletivas dos moradores e comerciantes, na proteção do patrimônio material e imaterial do bairro e no resguardo da qualidade de vida de Santa Tereza. “Alguma forma de organização sempre é necessária para a preservação das características culturais locais já consolidadas em centros urbanos. Os interesses sobre o espaço nas cidades são múltiplos e se apresentam de forma desigual perante o poder público, gerando dentre outros efeitos a gentrificação citada no bairro Anchieta. Nesse sentido, a participação da comunidade, através de associações ou outros modelos coletivos, é essencial, pois caso contrário a representação comunitária terá voz mínima frente a outras com maior capilaridade dentro das instituições públicas”, afirma.
Residente do bairro há 39 anos, ele acredita que a luta dos moradores para preservar as características originais do bairro é o que permite a formação de uma identidade comunitária, mantendo as pessoas como os bens mais importantes do bairro. “É o que garante a qualidade de vida no bairro, a história local e o charme de Santa Tereza para a cidade”, afirma Pedro, que é autor da dissertação Movimentos sociais e políticas públicas: um estudo de caso do Movimento Salve Santa Tereza, e acredita que a atuação da comunidade colaborou para a efetivação de políticas de conservação do patrimônio do bairro. “Foram diversos atos de mobilização social, participação em fóruns, debates, câmaras, exposição midiática, dentre outras ações para manutenção e criação de leis de proteção, tombamento de bens materiais e imateriais, e destinação correta dos imóveis públicos presentes no bairro”.
PARA SABER MAIS
Ouça o episódio A Dinâmica Espacial da Desigualdade Social nas Metrópoles do podcast PUC Play PUC Minas. A entrevistada é a cientista social Luciana Teixeira de Andrade, professora Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da PUC Minas e pesquisadora do Observatório das Metrópoles.