Fome e compaixão

“A fome não é só uma tragédia, mas uma vergonha para a humanidade”. Esta afirmação do Papa Francisco nos interpela, merece e precisa ser adaptada para o contexto brasileiro, tão tristemente marcado pela dor de muitas pessoas, incluindo famílias com as suas crianças, que muitas vezes não têm nada para se alimentar.

“Conviver com a fome em um país reconhecido por ser celeiro de tantos alimentos aponta para o desafio de tratar adequadamente a desigualdade social”
Dom Walmor Oliveira de Azevedo
Grão-chanceler da PUC Minas,
Arcebispo Metropolitano de Belo Horizonte,
Presidente da Conferência Nacional
dos Bispos do Brasil (CNBB)

Causa perplexidade e, ao mesmo tempo, revolta, saber que o Brasil, um dos maiores exportadores de alimento do mundo, é incapaz de livrar grande parte de sua população da fome. Estima-se que mais de 30 milhões de brasileiros são desrespeitados no direito fundamental à alimentação. Incoerência ainda maior: estudos apontam que grande parte daqueles que padecem com a fome residem no campo, justamente de onde saem os alimentos que abastecem o mundo. A afirmação do Santo Padre, muito oportuna, é especialmente adequada ao que se vive no Brasil: a fome é tragédia e, também, uma vergonha para os brasileiros.

Essa vergonha deve gerar incômodo e inspirar uma urgente reação, pois a indiferença em relação aos que sofrem agrava ainda mais os problemas. Desconsiderar a fome de muitos é agravar cenários de injustiça, promovendo contextos que geram violência e morte. A responsabilidade maior na busca por uma reação é de governantes, legisladores, autoridades, grandes empreendedores, mas não isenta cada pessoa de fazer a sua parte. Gestos simples de combate ao desperdício, de solidária ajuda aos que não têm o que comer, devem estar acompanhados do compromisso cidadão e cristão de exigir políticas públicas para enfrentar e superar a fome. Trata-se de dever ético e compromisso de fé, pois conforme adverte o Catecismo da Igreja Católica, “a aceitação pela sociedade de fomes mortíferas, sem se esforçar por lhe dar remédio, é uma escandalosa injustiça e um pecado grave”.

Conviver com a fome em um país reconhecido por ser celeiro de tantos alimentos aponta para o desafio de tratar adequadamente a desigualdade social. Sabe-se que a maior parte da produção que chega ao prato do brasileiro vem da chamada agricultura familiar – aquela que se estrutura em pequenas propriedades, a partir do trabalho de núcleos familiares. Essas famílias do campo enfrentam muita dificuldade, sem incentivo do poder público para realizarem as suas atividades. No outro extremo, aqueles que são grandes empreendedores, proprietários de vastas extensões de terra dedicadas à exportação, despertam mais sensibilidade nos políticos, inclusive contando com a atuação de bancadas nas instâncias do Poder Legislativo.

É louvável que um segmento econômico brasileiro, o agronegócio, seja mundialmente reconhecido. Fonte de riquezas para o país, gera também emprego e renda para a população. Naturalmente, esse campo estratégico merece a atenção das autoridades políticas, com marcos regulatórios que favoreçam o desenvolvimento econômico sustentável. Mas a prioridade é olhar com atenção para os pequeninos, os famintos, reconhecendo que a fome, em um país de tantos recursos, é consequência da desigualdade social.

Conforme ensina a Doutrina Social da Igreja, “a ação do estado e dos outros poderes públicos deve conformar-se com o princípio da subsidiariedade para criar situações favoráveis ao livre exercício da atividade econômica; esta deve inspirar-se também no princípio de solidariedade e estabelecer os limites da autonomia das partes para defender os mais frágeis”. A fome que castiga tantas famílias toque o coração de cidadãos e de dirigentes da sociedade para que cada brasileiro, indistintamente, possa também partilhar, pelo menos um pouco, da dor dos que não têm o que comer. Essa dor solidariamente partilhada, experimentada na consciência, é importante ponto de partida para uma reação cristã e cidadã, por um Brasil, celeiro do mundo, sem pratos vazios, verdadeiramente livre do flagelo da fome.

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