Infância monetizada

Dissertação analisa fenômeno de exposição de crianças em redes sociais, com fins mercadológicos

A prática da criação de perfis infantis nas plataformas de redes sociais pelos pais é crescente e vem sendo adotada principalmente por influenciadores digitais. Dessa forma, a dissertação de Ane Guimarães, que concluiu o mestrado em Comunicação Social pela PUC Minas em 2021, orientada pelo professor Ércio Sena, buscou observar esse movimento das redes de pais que criam perfis para seus filhos, a lógica de trabalho a qual submetem as crianças e a ética no que se refere a essa temática.

Em seu objeto empírico, Ane se debruçou, principalmente, sobre o perfil da influenciadora Jade Seba e a criação do perfil do seu filho Zion Seba Guedes, desde quando ele ainda estava na barriga da mãe. No caso de Jade, o anúncio da gravidez foi realizado através de uma empresa de testes de gravidez e o perfil de Zion, mesmo antes de ele nascer, já havia herdado milhares de seguidores, como sua mãe.

“Desde nova eu já seguia várias personalidades, pois a minha geração foi a da Revista Capricho, entre outras revistas teens, que mostravam jovens influenciadores. Eu acompanhava a Jade Seba desde antes da gravidez, mas meu olhar foi mudando com relação ao seu perfil a partir da maternidade, pois fui vendo a construção do perfil para uma criança e isso me gerou um incômodo”, explica Ane. O interesse no assunto relacionado à infância veio desde o Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) em Jornalismo pela PUC Minas, no ano de 2018, quando ela estudou o uso do Youtube por meninas em situação de vulnerabilidade.

De acordo com Ane, os perfis infantis crescem no quesito notoriedade e número de seguidores, podendo ser acrescidos por algum vídeo da criança, que é viralizado, ou a própria exposição diária que os pais fazem dos filhos. Essas práticas são propulsoras de criação de trabalhos para essas crianças. A visibilidade desses perfis desperta a atenção de marcas e empresas que fecham contratos de publicidade que envolvem a imagem dessas crianças para divulgar e ofertar produtos.

“Eu acredito que a minha dissertação contribui para o entendimento das redes sociais de diversas formas, não necessariamente no funcionamento da plataforma em si, mas o que gera a sua utilização para as novas gerações. Um dos principais pontos em que acredito é que as redes sociais reforçam esse ideal de ‘liberdade’ através da produção do capital e a lógica da construção do próprio trabalho dentro das redes sociais”, esclarece Ane. Segundo ela, é importante um olhar crítico sobre as redes sociais, nos questionando sobre a lógica neoliberal, que faz com que as pessoas acreditem que a única forma de liberdade é a de criar o próprio emprego, tornando-se empreendedor.

Para Ércio Sena, professor do Departamento de Comunicação Social da PUC Minas e orientador da dissertação, esse estudo oferece uma grande contribuição para os estudos da comunicação e também para a sociedade, pois as redes sociais fazem parte da vida das pessoas e, na medida que essas ações midiatizadas são reiteradamente realizadas pelos influenciadores, as pessoas comuns também são envolvidas nesses discursos, colocando a questão da monetização como um valor fundamental, acima de todas as outras coisas.

“Quando vemos o caso das plataformas digitais utilizando a presença das crianças nesse lugar, existe um comprometimento grande, não só desses perfis analisados, mas do direito à infância, que é negado nesse processo, uma vez que de uma forma ou de outra elas estão trabalhando a serviço de uma grande máquina, que é a reprodução de valores, interesses e práticas mercadológicas, em que essas coisas acabam sendo confundidas”, explana o professor.

O professor Ércio afirma que ao analisar um fenômeno de exposição de crianças por pais que são influenciadores digitais, há um olhar crítico para todas essas práticas que antecipam situações e vivências de crianças no mundo corporativo, muitas vezes infringindo princípios éticos e legais dessa prática. Nesse sentido, essa pesquisa traz uma contribuição fundamental para que essas práticas sejam, no mínimo, repensadas.

Ane começou a se interessar por temas relacionados à infância e às redes sociais durante o seu TCC, quando estudou sobre meninas em situação de vulnerabilidade e o Youtube | Foto: Acervo pessoal

Redes sociais x infância

A professora Mirelle França Michalick-Triginelli, coordenadora do Curso de Psicologia da PUC Minas Praça da Liberdade, explica que a infância é dividida em três fases: a primeira infância, que vai de zero até 2 anos de idade; a segunda infância, que é dos 2 aos 7 anos, e a terceira infância, dos 7 anos até a puberdade. Durante todas essas etapas do desenvolvimento infantil é importante que a criança tenha tempo para a realização de atividades recreativas, lúdicas e criativas, que as auxiliarão na formação do pensamento. Para exercer essas atividades, a criança precisa de tempo livre. “Quando uma criança começa a ser exposta muito nova, ainda bebê, às redes sociais, o que a gente vai observar é uma limitação desse tempo livre. Principalmente no caso dessas crianças que possuem essa lógica mercadológica no uso das redes sociais”, explica.

Segundo a professora, estudos contemporâneos na área da psicologia infantil e outros campos como a pediatria, por exemplo, têm percebido cada vez mais os perigos da exposição de crianças e adolescentes nas plataformas sociais. De acordo com a professora, além dos perigos gerados ao desenvolvimento psíquico, nota-se a dificuldade das crianças que são expostas em compreender o que é vida pública e o que é a vida privada, tornando-as dependentes da aprovação do outro e tendo dificuldade em reconhecer um limite sobre essa exposição. Dessa forma, as crianças ficam expostas a julgamentos, que muitas vezes são perniciosos para elas, que ainda estão vivendo processos de construção de identidade. “Além disso, um outro perigo é a exposição a conteúdos perigosos como, por exemplo, situações vexatórias, conteúdos sexualizados, dentre outros que não dizem respeito ao mundo infantil”, diz a professora Mirelle.

A professora reforça a importância de os pais não exporem seus filhos a situações de ridicularização nas redes sociais ou a situações de risco à integridade física. De acordo com ela, o ideal é a exposição do mundo infantil como ele é, sem tentar aproximá-lo do mundo adulto. Além disso, os pais devem se atentar para que seus filhos tenham uma infância prazerosa. “As crianças que são monetizadas em redes sociais são crianças trabalhadoras. Quando uma criança tem que parar uma atividade prazerosa para atender uma demanda daquilo que os pais querem que seja postado, acaba sendo impedida de viver e desfrutar a infância como ela é, pois viver a infância é ter tempo para brincadeira; é ter tempo para a criatividade”, finaliza.

Professora Mirelle França Michalick-Triginelli, coordenadora do Curso de Psicologia da PUC Minas Praça da Liberdade | Foto: Raphael Calixto

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