Novas formas de solidão em nossa sociedade

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Ao discorrermos sobre solidão em nossa sociedade temos, primeiramente, que definir o que entendemos como solidão. Nas primeiras linhas desta escrita já nos deparamos com o desafio da conceituação, pois a solidão pode ser pensada de variadas formas.

Uma busca rápida no dicionário¹ nos aponta para a complexidade dessa elaboração. A solidão pode ser entendida como “estado do que se encontra ou vive só”, mas também pode ser definida como “estado de quem se acha ou se sente desamparado ou só”, ou ainda, como “estado de quem se sente sozinho”. De fato, a primeira apreensão que temos da solidão é pela via do “sentimento” tal como nos aponta o dicionário: “sentir-se sozinho”, ‘sentir-se desamparado”, “sentir-se isolado, mesmo em grupo”, talvez seja o mais próximo que essa palavra pode transmitir de nossa experiência.

No entanto, não podemos apreender a solidão apenas sob a matiz desse sentimento. É necessário irmos além e aprofundarmos na definição, também apontada pelo dicionário, da solidão como “estado do que se encontra ou vive só”. Para avançarmos nessa direção, vamos recorrer à psicanálise.

Nessa perspectiva, a solidão é inerente à condição humana, sendo, portanto, estrutural, ou seja, constituinte do sujeito. Essa solidão estrutural é relativa ao fato da impossibilidade de o sujeito fazer um com o outro, nos remetendo, pois, à experiência de separação que está na base da relação do sujeito com o Outro desde a mais tenra infância. (Ferrari, 2008)

A solidão é, assim, essencialmente simbólica. O que isso quer dizer? Isso quer dizer que a solidão não pode ser entendida como falta deste ou daquele objeto determinado. Podemos estar rodeados de gente, ou na presença de todos os objetos que poderiam nos satisfazer e ainda assim nos sentirmos sós.

Freud (1920-1996) se interessa, sobremaneira, por uma brincadeira realizada pelo seu neto de apenas dezoito meses de idade. Este fazia, repetidamente, uma brincadeira com um carretel segurado por um cordão, o que era acompanhado de satisfação. Esse menino que estava aprendendo a falar as primeiras palavras, dizia “o-o-o-o-o”, interpretado por Freud e sua mãe, como fort, “foi embora”, quando lançava o carretel para fora do berço e o artefato se distanciava. Em seguida, o garotinho pronunciava da, “está aqui”, quando o carretel se aproximava. O psicanalista não banaliza essa interessante brincadeira. Pelo contrário, extrai dela uma experiência paradigmática para pensar a relação dos sujeitos com os objetos e com o desejo.

Segundo Freud, esse jogo permite à criança suportar a ausência da mãe, sem protestar. A presença real da mãe é substituída na linguagem pelo jogo com as palavras. Podemos aprender com base no jogo do “Fort-da” que a relação do sujeito com o outro e com os objetos é mediada pela linguagem, o que está na base da separação, permitindo o sujeito lidar com a falta do outro simbolicamente.

Depreendemos, portanto, dessa experiência que nossa relação com o objeto, uma vez que somos seres de linguagem, é sempre com a falta de objeto e não com o objeto em si. Por essa razão, compreendemos que na vivência da solidão supomos haver uma presença onde algo se ausenta (TATIT; ROSA, 2013). Assim, não basta que o outro esteja presente, pois essa solidão estrutural constituinte, pode ser sentida. Nessa solidão, também chamada de solitude, o objeto que identificamos como aquele que pode cobrir nossa falta é deslocado de sua função encobridora. (DUNKER, 2017)

Essa experiência de encontro com nossa própria solidão, com nossa solitude, não é nada simples já que ela exige de nós um luto das garantias ilusórias de suprir nosso narcisismo.

Isso se torna ainda mais difícil em nossos tempos. O capitalismo e a oferta infinita de objetos de consumo, os gadgets, prometem um preenchimento dessa falta narcísica constitutiva, e o fazem apenas por um instante, lançando os sujeitos em um circuito viciante de consumo. As relações passam a ser pautadas pela fantasia de que esses objetos irão satisfazer completamente. O encontro com o outro fica empobrecido na medida em que entram no circuito da mercadoria. Qualquer frustração causa muito sofrimento fazendo com que alguns sujeitos entrem numa postura de isolamento, de recusa do encontro, por exemplo.

Nesse sentido, notamos uma sobreposição de solidões: a solidão estrutural é substituída pelo isolamento, pela recusa do encontro com o outro. O rechaço dessa solidão estrutural acaba por produzir ainda mais solidão, já que pode avizinhar-se os sentimentos de desamparo, a falta de sentido, a desconexão com os outros.

Uma outra face desse isolamento em nossa sociedade diz respeito ao modo como muitas vezes tentamos encobrir o mal-estar proveniente dessa perda constituinte, solidão estrutural, pelos ideais homogeneizantes da autossuficiência, do self-made man. É preciso estar sempre pronto, no controle de nós mesmos. Ao recusarmos qualquer divisão subjetiva, acabamos por encarar perdas, frustrações inerentes à vida como fracasso. Afinal, não nos permitimos admitir que no “meio do caminho tinha uma pedra”, como já dizia o poeta.

A solidão passa a ser vivida, assim, como sentimentos que parecem solidão, mas não são: são sentimentos de vazio, irrelevância, fracasso, desânimo e apatia diante da vida.

É curioso que quanto mais recusamos o encontro com nossa solidão estrutural, menos estamos, de fato, sozinhos.

Ao nos sentirmos fracassados, irrelevantes não estamos a sós, mas estamos acompanhados de uma voz interior que duplica o Outro social atual, que nos diz que temos que nos satisfazer constantemente, que temos que ser autossuficientes, que temos que “consumir” o outro como mercadoria. Por essa razão, entendemos a hiperconectividade hoje, muitas vezes, como uma experiência solitária. Os sujeitos pela mediação dos dispositivos e aplicativos se ligam ao outro como objetos-mercadoria que usam na busca de uma satisfação imediata, produzindo ainda mais solidão.

A cada vez que combatermos nosso vazio, procurando tamponá-lo com objetos-mercadoria num circuito viciante, recusando o encontro com o outro pela via do isolamento ou pelo ideal de autossuficiência, estaremos perdidos. É preciso aceitarmos nossa separação com o outro para que possamos viver juntos.

¹ Ver: SOLIDÃO. In: Michaelis dicionário brasileiro da língua portuguesa. São Paulo: Melhoramentos, 2023. Disponível em: https://michaelis.uol.com.br/moderno- portugues/busca/portugues-brasileiro/solid%C3%A3o/.

Profa. Dra. Aline Aguiar Mendes

A tecnologia também é elemento protagonista do artigo Novas formas de solidão em nossa sociedade, produzido pela Profa. Dra. Aline Aguiar Mendes, da Faculdade de Psicologia. As relações mediadas pelos gadgets lançam o sujeito em um circuito viciante de consumo, onde a relação com o outro passa a ser pautada como mercadoria e a temática se conecta com a abordagem da matéria sobre o cuidado com a saúde mental presente nesta edição.

A Revista PUC Minas não se responsabiliza pelas opiniões expressas pelos autores nos artigos assinados.

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