Palavras escritas, palavras vigiadas

Análise de cartas escritas por adolescentes em privação de liberdade
Foto: Smolaw/ShutterStock
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As cartas são uma das mais antigas formas de comunicação e carregam registros da humanidade. No século XIV a.C., os governantes da Mesopotâmia e do Egito Antigo trocavam correspondências, que hoje são chamadas de Cartas de Amarna. Na Bíblia, diversos capítulos do Novo Testamento foram redigidos como cartas, escritas principalmente pelo apóstolo Paulo.

Foi por meio de uma carta que Pedro Vaz de Caminha contou a Dom Manuel I suas impressões ao chegar à terra que viria a ser chamada de Brasil. Também foi com uma carta que a Imperatriz Maria Leopoldina alertou Dom Pedro I sobre as exigências da Coroa Portuguesa e levou o imperador a proclamar a independência do país às margens do rio Ipiranga. A renúncia de Jânio Quadros à presidência foi feita por meio de uma carta. Foi com uma carta que a escritora Clarice Lispector solicitou ao presidente da época, Getúlio Vargas, que fosse naturalizada brasileira. Vargas, por sua vez, redigiu a famosa carta-testamento, endereçada ao povo brasileiro, horas antes de sua morte. A canção Meu caro amigo, de Chico Buarque, derivou-se de uma carta escrita ao diretor de teatro Augusto Boal, que estava exilado em Lisboa durante a ditatura militar.

Antes dos telefones, e-mails, mensagens de texto e redes sociais, eram as cartas que permitiam a comunicação entre as pessoas. Atualmente, com o avanço da internet, foram deixadas de lado. Contudo, ainda há aqueles que escrevem pelo saudosismo, enquanto outros, mesmo na era digital, só têm as cartas para se comunicar. Por trás das grades ou muros, é com papel e caneta que os detentos podem falar com a família.

A tese A exclusão na escrita de si: análise linguístico-discursiva de cartas de adolescentes privados de liberdade, defendida por Fernando Miranda Arraz pelo Programa de Pós-graduação em Letras, estuda cartas escritas por adolescentes de 12 a 15 anos do Centro de Internação Provisória do bairro Horto, em Belo Horizonte.

A ideia da pesquisa surgiu quando Fernando acompanhou uma oficina de cartas do Centro, onde atuava como diretor. “Vi uma escrita totalmente vigiada, com a presença de um agente socioeducativo e de um representante da equipe técnica. Após a escrita da carta, um servidor faz a leitura e, em seguida, marca com um carimbo (autorizado ou não autorizado). Diante disso, percebe-se que o sujeito, além de estar aprisionado fisicamente, tem sua escrita e sentimentos encarcerados”, relata.

Uma das principais bases para a tese foi Michel Foucault, referência em estudos tanto sobre a escrita quanto sobre os modelos prisionais. Fernando conta que, para Foucault, “a carta vai além do adestramento de si pela escrita, sendo uma forma individual de se manifestar a si próprio e aos outros. Escrever é considerado um ato de se mostrar, ou seja, constitui um certo estilo de cada um revelar-se a si próprio e aos outros”.

Por mais que o pesquisador soubesse de alguns dos contextos dos adolescentes, optou por não ter mais conhecimentos sobre os detalhes de cada um antes de ler e analisar os materiais. Foram escolhidas 13 cartas e, a partir da leitura, Fernando notou a recorrência das temáticas religiosa e jurídica. Trechos como “mesmo sem entender eu confio em Ti, mesmo sem entender eu sei que é melhor para mim” e “durmo sonhando com minha liberdade e acordo atrás das grades. Deus vai me ajudar” foram sinalizados na pesquisa.

A tese, orientada pela Profa. Dra. Daniella Lopes, aponta que as emoções dos sujeitos acautelados são materializadas nas cartas e vão ao encontro incerto de um destinatário. Os trechos “estou muito arrependido. Toda alegria é passageira, nenhum sofrimento é eterno” e “vó, eu sei que não sou o neto que a senhora pediu, mas peço perdão por meus atos”, são alguns exemplos da tentativa de transpor os muros do Centro.

Fernando também elucida que, considerando que os adolescentes são vigiados por representantes do Estado, é possível notar nas cartas “uma reprodução dos próprios discursos, aos quais esse sujeito se submete. Ele diz o que a instituição socioeducativa quer ouvir”, aponta. Esta conclusão pode ser visualizada, por exemplo, no trecho “mãe, me desculpa por escolher essa vida. Quando eu sair daqui, não volto para o tráfico”.

Sabendo-se que as cartas são lidas por agentes do Estado e podem ser aprovadas ou não, o pesquisador conclui que os discursos são marcados pelo contexto. “Sendo vigiado e cerceado, há uma reprodução dos próprios discursos, aos quais esse sujeito se submete. Dito de outra maneira, esse sujeito acautelado diz o que a instituição socioeducativa quer ouvir”, afirma. Parafraseando Foucault, ele reflete que “de uma maneira ou de outra, as coisas ditas dizem muito mais do que elas próprias”.

Fernando Miranda Arraz | Foto: Arquivo pessoal

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