Quando o humano faz morada na dor

Mais que um mero conceito, a formação humanística é um norte para todos os cursos da PUC Minas, especialmente na Saúde
Foto: Fernanda Garcia
Foto: Fernanda Garcia

Próximo. Essa é a palavra repetida à exaustão, todos os dias, em consultórios e hospitais das mais variadas especialidades. Anuncia avanços singelos em filas de espera que, muitas vezes, colocam à prova a paciência dos pacientes. Na ânsia por atendimento, não é raro que se tenha de suportar a dor, alguns atrasos, meses de espera por uma consulta e, em casos mais graves, até a escassez dos leitos que determina quais vidas podem ser preservadas – e quais não são.

Por um lado, o Brasil se destaca de outros países ao manter um dos maiores e mais complexos modelos de saúde pública do mundo, o Sistema Único de Saúde (SUS). Por outro, a profunda desigualdade social se faz ver, nitidamente, nos ambientes que promovem o cuidado com o ser humano. Muitos centros de referência, equipados com a mais avançada tecnologia, permanecem acessíveis apenas a quem pode arcar com dispendiosos convênios médicos, ao passo que uma imensa parcela da população padece nos gargalos da rede.

Lidar com as disparidades e fazer a diferença nesse cenário são tarefas que requerem sensibilidade. É por isso que, no dicionário dos bons profissionais de saúde, o verbete próximo carrega significados que o fazem ir além de um adjetivo. Ao tratar o próximo como substantivo, como se faz no senso comum e, de modo especial, na tradição religiosa, o profissional entende o paciente como semelhante, alguém que vai além da doença, digno de uma escuta atenta e de uma proposta terapêutica condizente com a sua realidade.

O humanismo como caminho para a formação

A PUC Minas, ao elaborar seus currículos de graduação e pós-graduação, busca propiciar experiências capazes de formar mais do que especialistas: pessoas que, além de tecnicamente capacitadas, sejam atentas e sensíveis às questões individuais e sociais que impactam aqueles que recorrem ao seu trabalho. A formação humanística é um norte para todos os cursos da Universidade, com um papel preponderante na área da Saúde.

“Humanizar é qualificar nossa conduta ao cuidar do outro. O paciente precisa ser visto como alguém que tem uma história, que é o amor de alguém. Nosso papel não é só o de fazer um procedimento, mesmo porque, às vezes, somos nós mesmos o medicamento do qual alguém precisa.” Essa é a visão da professora Luciana Jerônimo de Almeida Silva, responsável por disciplinas teóricas e práticas, inclusive de estágio, no Curso de Enfermagem do Campus Poços de Caldas.

A docente relata que, ao encarar o cotidiano das Unidades Básicas de Saúde (UBSs) e de pronto atendimento ainda na graduação, os alunos se deparam com a necessidade de desenvolver habilidades que nem sempre estão nos livros. Empatia, respeito, ética, paciência e comunicação assertiva são alguns dos atributos comportamentais indispensáveis para a atuação nesses ambientes.

Luciana chama a atenção para a necessidade de treinar o olhar e enxergar além da doença, reconhecendo o que ela denomina de lesões sociais. Elas ocorrem quando o problema de saúde do paciente persiste, não por questões biológicas, mas pelo contexto em que se insere. Alguns exemplos observados com frequência são a escassez de recursos, a falta de acesso a determinados serviços, o despreparo de familiares que assumem o papel de cuidadores e, até mesmo, o estado de saúde mental do paciente, que interfere na adesão ao tratamento.

Para a Profa. Luciana Jerônimo, a experiência nas Unidades Básicas de Saúde (UBS) oferece aos alunos a possibilidade de desenvolver habilidades que nem sempre estão nos livros | Foto: Fernanda Garcia

Lições transformadoras já na graduação

Em julho deste ano, a estudante Caroline Vitoria Rodrigues, que hoje cursa o 8º período de Fisioterapia no Campus Poços de Caldas, publicou nas redes sociais uma carta aberta ao seu primeiro paciente. Na postagem, ela relata as experiências que viveu ao lado das colegas Déborah Lopes de Faria Lima e Thais Nastrini Pereira durante o estágio obrigatório em Saúde Coletiva, realizado no 7º período do curso.

Ao ser encaminhado para atendimentos domiciliares vinculados a uma UBS, o grupo de Caroline conheceu Sr. Benedito, um paciente idoso que já havia sofrido dois Acidentes Vasculares Encefálicos (AVE, também conhecido popularmente como AVC) e apresentava uma série de problemas motores, como a paralisia de parte do corpo, a dificuldade para flexionar os membros e a marcha lateralizada. Passava a maior parte do dia acompanhado apenas por sua cachorrinha, uma vez que o filho com quem morava precisava sair para trabalhar.

Ao passo que as visitas ao Sr. Benedito se tornaram regulares, Caroline percebeu que o desespero e a insegurança de uma profissional em processo de formação logo se transformaram em perseverança para proporcionar mudanças ao paciente. A supervisão docente foi fundamental, segundo a estudante, para definir a conduta do grupo de maneira técnica e humanizada.

Para Caroline, essa foi uma experiência transformadora, que lhe permitiu encontrar-se na profissão. “Entendi que eu não trato a patologia, mas a pessoa. É muito importante olhar para o paciente como um todo e entender que estamos lidando com seres humanos, que têm suas questões. Para muitos, a maior dor não é a física”, avalia.

Primeiro contato com uma dor imponderável

Para estimular os alunos a elaborar de maneira profunda seus aprendizados, é comum em cursos oferecidos pela PUC Minas na área da Saúde a produção de portfólios reflexivos. Esse tipo de atividade desafia os estudantes a revisitar suas experiências práticas, instigando-os a pensar sobre lições que vão além da técnica.

Uma dessas produções repercutiu entre o corpo docente recentemente. Ao concluir o internato em Cirurgia, a estudante Gabriela Moreira Cason, que cursa o último período de Medicina do Campus Poços de Caldas, fez um relato impactante e sensível sobre a primeira vez em que, apesar dos esforços para preservação da vida, viu a morte pelas lentes de uma profissional em formação.

Era um homem, paciente oncológico, com um quadro gravíssimo. Estava com uma hemorragia digestiva alta e, no processo de intubação, sofreu uma parada cardiorrespiratória. Os processos de reanimação começaram e Gabriela logo foi acionada para executar movimentos que, até então, só havia praticado com robôs do Centro de Simulação Avançada da Universidade.

O sangue na boca e nas narinas do paciente era uma das muitas evidências de que nem mesmo os treinamentos prévios amenizariam a dificuldade de estar ali. As manobras eram as mesmas, mas o sentimento não. Havia uma vida ali. “Ele poderia ser meu pai.” O pensamento intrusivo tentava dominar a mente da estudante, mas ela se mantinha concentrada, enquanto seus braços e seu uniforme se pintavam de vermelho.

O óbito foi registrado. Gabriela prendeu as lágrimas para acompanhar o momento de informar o ocorrido à filha do homem. “Ela poderia ser eu”, pensou, contendo a emoção. E, mesmo naquele instante delicado, ela aprendeu. Conforme explica em seu portfólio, pôde ver a eficiência do protocolo Spikes, usado para transmitir más notícias a pacientes e familiares, mas não só isso. Viu também a sensibilidade e a oportuna escolha de palavras e o acolhimento que a médica conseguiu transmitir.

Ao sair, finalmente pôde chorar. “Chorar porque aquela menina tinha perdido o seu pai e estava sozinha e arrasada. Chorar porque aquele senhor cujo tórax eu afundei em cinco centímetros ao ritmo de Stayin’ Alive [famosa música da banda Bee Gees que, mentalmente, auxilia a manter a frequência das compressões no processo de reanimação] não poderia mais segurar sua filha nos braços. Chorar porque despedidas são tristes e faz parte de quem eu sou me emocionar com as emoções dos outros – com a morte e com a vida.”

A aluna Caroline Rodrigues, à esquerda, relata que a experiência do estágio obrigatório foi transformadora | Foto: Fernanda Garcia

O autocuidado como ferramenta de trabalho

Esse trecho do relato de Gabriela impacta ao evidenciar que o profissional também é humano. Ao conversar sobre sua experiência, a estudante reflete sobre a importância do elo entre a formação humanística e a capacitação técnica. Os conhecimentos específicos oferecem estratégias para não sucumbir à emoção e, assim, manter a melhor conduta nos momentos mais críticos.

Nesse sentido, é fundamental que os profissionais de saúde estejam atentos à própria saúde. Na lida constante com a morte, a doença e o sofrimento físico e psíquico, o autocuidado emerge como ferramenta para quem cuida do outro. A lógica é similar à de um avião em caso de despressurização: primeiramente, deve-se colocar a máscara de oxigênio em si mesmo para, só então, auxiliar as demais pessoas.

A Profa. Dra. Fernanda Mendes Resende, do Curso de Psicologia do Campus Poços de Caldas, reforça a importância de adotar um estilo de vida que proporcione bem-estar ao profissional. Preservar o tempo necessário para descanso, manter uma alimentação equilibrada, realizar atividades físicas regulares e estabelecer limites entre o trabalho e a vida pessoal são algumas das atitudes destacadas pela docente.

“É preciso estar inteiro. Se você, profissional de saúde, desenvolve algum problema grave, é você quem vai precisar de cuidado. Quando eu digo para o meu paciente o que é necessário fazer para manter a saúde, eu também preciso tentar manter essa conduta na minha vida, mesmo que eu encontre dificuldades”, defende.

Na relação com os pacientes, especialmente na prática da Psicologia, Fernanda ressalta que o método de trabalho do profissional deve ser informado com clareza. Para que o acompanhamento terapêutico transcorra bem, com adesão do paciente, é necessário que ele compreenda como acessar adequadamente o profissional, sabendo em quais horários ele está disponível e qual será a dinâmica das consultas, por exemplo.

A Profa. Fernanda Resenda reforça a importância de adotar um estilo de vida que proporcione bem-estar ao profissional | Foto: Fernanda Garcia

Atenção ao corpo, à mente e à alma

A formação humanística preconizada pela PUC Minas se reflete na percepção dos pacientes. É o caso de Neuza Rossi, moradora de Poços de Caldas, que foi encaminhada ao Hospital da Zona Leste para tratar uma forte dor no ombro. Ela foi atendida por estudantes de Medicina da Universidade, acompanhados por um profissional da Unidade, e relata que se sentiu muito acolhida nas consultas. “Eles me ouviram com atenção, examinaram com cuidado e anotaram tudo que eu disse”, relembra.

A busca por um atendimento humanizado orienta não só as atividades de graduação, mas também os currículos de pós-graduação. O médico Otávio Amâncio da Silva, primeiro egresso do Programa de Residência Médica em Medicina de Família e Comunidade do Campus Poços de Caldas, reconhece que a sua formação o levou a uma compreensão mais ampla das estruturas familiares e sociais em que os pacientes se encontram. Como especialista na área, ele aplica esses conhecimentos em sua rotina e busca atualização constante para se adequar às novas realidades.

A atuação da Pastoral Universitária também destaca a PUC Minas em relação a outras instituições de ensino. A coordenadora da Pastoral em Poços de Caldas, Rosinei Costa Papi Dei Agnoli, esclarece que muitas atividades são abertas a pessoas de todos os credos, criando um ambiente plural que favorece a escuta e o compartilhamento. A própria Caroline, aluna de Fisioterapia que participou dos atendimentos ao Sr. Benedito, é um exemplo de estudante que, mesmo professando uma religião que não é a católica, participa com frequência de atividades realizadas no Centro de Espiritualidade Jesus Peregrino.

Segundo Rosinei, as experiências de formação profissional reverberam em espaços como os grupos de vivência, oficinas e rodas de conversa. “Buscamos promover a cultura do encontro, despertando os alunos para as realidades que nós impactamos e que também nos impactam. Muitas vezes, é aqui que os participantes produzem sentido para aquilo que estão vivenciando”, comenta.

A preocupação com o bem-estar dos graduandos nas esferas do corpo, da mente e da alma se reflete na postura interdisciplinar que tendem a adotar, uma vez formados. O atendimento humanizado é aquele que não se preocupa apenas com a sua especialidade, mas que considera o indivíduo em sua completude, buscando conduzi-lo em um tratamento que pode requerer a inclusão de profissionais de outras áreas. Assim, quando o humano faz morada na dor, é possível contribuir para que essa seja apenas uma casa passageira.

A atuação da Pastoral Universitária do Campus Poços de Caldas, coordenada por Rosinei Costa Papi Dei Agnoli, busca criar um ambiente plural que favorece a escuta e o compartilhamento | Foto: Fernanda Garcia

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