Quem cuida de quem cuida? Este questionamento inspirou Flávia Linhares Martins a estudar as experiências de mulheres que são mães de crianças com deficiências. Pediatra na Atenção Primária à Saúde (APS) em Poços de Caldas, a autora tem contato diário com crianças, geralmente acompanhadas pelas mães.
A dissertação, do Programa de Pós-graduação em Psicologia, teve como proposta discutir as relações mãe-filho no contexto de deficiências. Para isso, entrevistou oito mulheres que são mães biológicas e principais cuidadoras de crianças de até 12 anos com deficiências. Mães não biológicas foram excluídas da amostra uma vez que podem ter assumido o cuidado voluntariamente.
Flávia relata que as vidas dessas mulheres sofrem alterações nos planos e rotinas. “Elas muitas vezes abdicam de esta no mercado de trabalho, pois não há divisão das responsabilidades. O cuidado é internalizado como uma obrigação”, afirma.
Intitulada Mar calmo, mar revolto: a experiência de mulheres que são mães de crianças com deficiências, a dissertação foi orientada pela Profa. Dra. Luciana Kind do Nascimento, que enfatizou a questão de gênero no cenário da pesquisa. “Nem sempre os pais têm o mesmo grau de responsabilidade que as mães. Elas quase sempre são invisibilizadas e pressupõe-se que dão conta do recado”.
Além das entrevistas, Flávia também selecionou uma das mães para acompanhar a rotina e fazer registros fotográficos. As fotos tiveram um importante papel na metodologia, ampliando capacidade de ver o outro e contribuindo para a captação das subjetividades dos relatos. Uma vez que as fotos foram feitas, a entrevistada deu um título para uma, acrescentando suas próprias vivências.
Quem a recebeu em casa foi Ana Rita (39), mãe de Isis (11), com deficiência física devido à Atrofia Muscular Espinhal tipo II. “Eu vejo que falta um olhar para nós. Comentei com meu marido que eu estava com muitas dores nas costas. Levei Isis à fisioterapia e pensei como precisava de um alongamento. Às vezes olho para a sala de espera da clínica e percebo como seria bom ter um projeto para as mães”. Ana Rita enfatiza que a fisioterapia chama sua atenção, pois usa do seu próprio corpo para ajudar a filha nas atividades diárias, pegando-a no colo para colocar na cama e na cadeira de rodas, por exemplo.
Redes de apoio
Ana Rita participa de grupos do WhatsApp com outras mães de crianças com a mesma patologia da filha, onde pode trocar informações, sentimentos e práticas.
Outra entrevistada, Helen (32), é mãe de Vitor (1), que é deficiente visual. Ela conta que compartilhar a vivência em grupos é bom, pois “você percebe que não é a primeira e nem a última. Você aprende e ensina”, diz. O diagnóstico do filho foi uma motivação para que retomasse os estudos. “Comecei a estudar a deficiência visual e agora faço um curso de inclusão social e de Braille. Quero saber tudo o que meu filho tem direito. Penso que posso ajudar outras mães”, conta.
Na pesquisa, Flávia aponta que algumas mulheres têm ajuda da família, principalmente da avó materna. “Entretanto, apenas o familismo não dá conta de se responsabilizar pelo cuidado. A rede de apoio não pode ser entendida apenas como da família ou de pessoas próximas”.
Algumas mães relataram que a escola mostrou proatividade em acolher a criança. Ana Rita conta que participou de uma reunião com professores e auxiliares do colégio, que perguntaram como poderiam melhorar o ambiente escolar. “Nós não temos ideia de como sair de casa é um grande esforço. Não só para minha filha, mas para outros alunos com deficiências também”, afirma.
Contudo, ainda que algumas escolas deem suporte às crianças com deficiências, não é uma regra. Mara (44), mãe de Lucas (6), com Transtorno do Espectro Autista, conta que seu filho frequenta a creche somente no período da manhã, pois é quando tem um mediador escolar disponível.
Ao longo das entrevistas, Flávia constatou que “as mães de crianças com deficiências apresentam demandas de saúde, emocionais e físicas em consequência das atividades como cuidadoras e sobrecarga de tarefas. Acrescentam-se, ainda, vivências de preconceito junto com seus filhos e falta de acessibilidade.
A pesquisadora aponta que o apoio às mães precisa ser pensado de maneira coletiva e não individual. “As mulheres que cuidam também precisam ser vistas na teia político-relacional da deficiência”, afirma.
Novas compreensões
Ao ser questionada sobre os impactos da pesquisa na sua atuação como médica, Flávia contou que permitiu uma abertura do seu olhar e “um entrelaço entre diferentes áreas, para além dos conceitos apenas biomédicos, e a valorização do conhecimento prático das famílias na tomada de decisões”.