Passar por um período no sistema carcerário brasileiro é uma experiência marcante. Mas recomeçar a vida fora da prisão também é um desafio. “Quando você sai, as pessoas olham para você de forma diferente, ficam com preconceito e tratam você com indiferença”, disse Gabriel Regis da Silva, que passou quase oito meses detido por tráfico de drogas, entre 2013 e 2014.
Mesmo tendo cumprido sua pena, Gabriel continuou pagando a sentença social. “Quando paro em uma abordagem policial de rotina e eles verificam que tenho passagem, o comportamento muda completamente. Durante uma blitz, já falaram da minha passagem para amigos que não sabiam que já fui preso, e tenho vergonha disso”, lembra.
Diante de casos como esse, juristas defendem a limitação de acesso a informações que podem dificultar o recomeço da vida: o direito ao esquecimento. Porém, o Supremo Tribunal Federal (STF) considera que esse consentimento não é compatível com a Constituição Federal, por esbarrar em alguns direitos fundamentais. Esse debate foi tema da monografia da egressa do Curso de Direito do Campus Barreiro Aline de Almeida Souza, que recebeu o reconhecimento de Melhor Trabalho de Conclusão do Curso de Direito, turno manhã, no segundo semestre de 2024.
Aline defende em seu trabalho que o direito ao esquecimento pode ser aceito no ordenamento jurídico brasileiro, assim como sua importância para reinserção social das pessoas. “Reconhecer o direito ao esquecimento é importante para permitir a esse indivíduo se livrar também da condenação da sociedade. Essa pena deixa de ser perene e chega a um fim”, argumenta Aline.
O direito ao esquecimento pode ser entendido como o direito de uma pessoa evitar que fatos passados sejam expostos ao público geral e venham causar transtornos ou sofrimento para ela. Isso inclui também notícias na internet, programas de TV, entre outros meios de informação. “Seria importante que a pessoa tivesse a oportunidade de reconstruir a própria vida, levando em consideração que, ao cumprir sua pena, não volte a ser punida novamente pela sociedade”, opina a Profa. Dra. Érica Adriana Costa Zanardi, orientadora da monografia.
Gabriel relata que a condenação social afeta sua vida até hoje, mesmo dez anos após sua saída da prisão. “Fiz uma entrevista para trabalhar como porteiro, já estava tudo certo para começar, só faltava fazer o exame médico. Uma semana antes, me ligam para falar que dariam oportunidade para outros candidatos. Acredito que descobriram minha passagem pela prisão e por isso me dispensaram”, conta.
Por outro lado, o professor do Curso de Direito do Campus Barreiro Dr. Rogério Filippetto de Oliveira acredita que o direito ao esquecimento pode reforçar a vedação da divulgação de informações criminais de uma pessoa. Ele lembra que o empregador não pode consultar os antecedentes criminais de terceiros, mas acaba solicitando a certidão para o próprio candidato, que tem acesso a essa informação. “O direito ao esquecimento justificaria a proibição de divulgação externa dessa informação, que apenas deveria poder ser fornecida aos órgãos do Estado”, argumenta o professor.
Aline, por sua vez, lembra que a Constituição Federal garante uma vida digna às pessoas e que o direito ao esquecimento, em muitos casos, pode estar ligado a essa garantia. “Nós temos a oportunidade de salvar esse indivíduo do eterno rótulo de criminoso, desvinculando-o de culpas e represálias sofridas no meio social e possibilitando a construção de uma nova história”, disse a autora da monografia.
Além da importância para a ressocialização de ex-detentos, o direito ao esquecimento pode ser aplicado em outras situações, como de famílias que não querem reviver a perda de um parente. “Em muitos casos, essa tese é trazida à análise do Poder Judiciário pelas famílias das próprias vítimas, que não querem reviver publicamente a dor pela qual passaram, quando o caso, por exemplo, é inserido em um programa de TV que exibe crimes já ocorridos”, exemplifica a orientadora do trabalho.
A Profa. Érica ainda acredita que o STF possa ter um posicionamento distinto no julgamento de outros casos, em que considere o direito ao esquecimento mais importante que o direito à informação. Já o Prof. Rogério acredita na manutenção da decisão, mas com ajustes individualizados na execução. Porém, os dois professores defendem que esse direito não seja aplicado a casos de relevância histórica. “Seria um absurdo, por exemplo, um agente público que torturou presos políticos querer o direito ao esquecimento sobre os atos praticados por ele”, defende a professora.