Quando o foco é no invisível

Nesta entrevista, Fernanda aborda as ações da Providens, a importância de proteger os públicos atendidos e o seu trabalho na gestão da instituição
Foto: Guilherme Simões

A utopia de um país em que crianças e adolescentes não sejam vítimas de violência é o que move a graduada em Serviço Social e com mestrado e doutorado em Psicologia, Professora Fernanda Martins. Atualmente ela é diretora-geral da Providens, secretária-executiva do Movimento Nacional Pró-convivência Familiar e Comunitária e conselheira convidada do Conselho de Fomento das Parcerias do Terceiro Setor com o Poder Público (ConFoco). A docente do Departamento de Serviço Social e do Curso de Psicologia da PUC Minas já foi vice-presidente do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente.

A Providens presta atendimento gratuito nas áreas de serviços socioassistenciais, saúde, educação, habitação, geração de renda e inserção no mercado de trabalho. Organizou-se em 2018 a partir da fusão de três instituições: a Providência Nossa Senhora da Conceição (1952), a Fundação Obras Sociais Nossa Senhora da Boa Viagem (1954) e a Associação Projeto Providência (1988). Em 2023, a Providens recebeu pela quarta vez o Prêmio Melhores ONGs, realizado pelo instituto O Mundo que Queremos (IOMQQ) e pelo Instituto Doa e foi reconhecida como a melhor de Minas Gerais e uma das 100 melhores do Brasil.

A criança e o adolescente são pessoas em formação e protegê-los significa proteger o futuro da sociedade. Nesse sentido, considerando a realidade socioeconômica do Brasil, quais os principais desafios para o avanço das políticas e programas que garantem o desenvolvimento dessa parcela significativa da população?

Hoje, no país, são mais de 33 milhões de pessoas vivendo abaixo da linha da pobreza e temos um grande problema de insegurança alimentar. Embora a alimentação seja um direito básico previsto no artigo 227 da Constituição e no artigo 4º do Estatuto da Criança e do Adolescente, essa não é a realidade. A pobreza alimentar não permite que crianças e adolescentes tenham desenvolvimento integral. O artigo 4º responsabiliza a sociedade e o poder público a assegurarem aos jovens do país o direito à habitação, educação, saúde, lazer, cultura, profissionalização, alimentação e, principalmente, o direito à convivência familiar e comunitária. Acho que um desafio no nosso país, onde a desigualdade social impera, é ter o mínimo do que está previsto na lei.

Além disso, há outro tipo de nutrição fundamental para o desenvolvimento infantil, a nutrição afetiva. É necessário nutrir o corpo, mas também a alma e a mente. O afeto é importante para os neurônios, para a autoestima, para o desenvolvimento efetivo de uma criança e adolescente. Precisamos fortalecer os vínculos das famílias.

Em termos dos riscos pessoal e social que afligem as crianças e jovens, quais são os principais desafios que requerem uma ação mais aprofundada para que sejam verdadeiramente mitigados?

As políticas públicas precisam ser focadas na prevenção e promoção dos direitos de crianças e adolescentes. Como disse Amartya Kumar Sen, economista e escritor indiano vencedor do Nobel de Economia, é preciso investir no desenvolvimento de habilidades, pois isso é libertador e dá mecanismos para enfrentar a pobreza.

Por isso, no Projeto Providência, oferecemos atividades como dança, música, artes marciais e aulas de culinária para as crianças. Isso possibilita que, no futuro, a habilidade adquirida confira a elas mais liberdade.

Temos chefes de cozinha de renome em Belo Horizonte que tiveram o primeiro contato com a culinária conosco. Um jovem campeão de judô em São Paulo que passou pelo projeto. No último Campeonato Mineiro de Judô, ganhamos doze medalhas.

Falo para as crianças e adolescentes: não deixem que ninguém determine o seu futuro, nada de falas dominadoras e únicas. “Você não consegue, você não pode, você não vai.” Quem determina o nosso futuro somos nós mesmos.

Em 2018, a Ação Social Arquidiocesana se tornou Providens, que é a união de três grandes instituições. Como se estrutura o trabalho desenvolvido por vocês, nessas oito instituições, na busca pela valorização da pessoa e da família?

Não é fácil articular a fusão, mas deu certo. Foi uma orientação de Dom Walmor, presidente da Providens, e foi ótimo pois os projetos desenvolvidos pela Arquidiocese de Belo Horizonte não tinham tanto diálogo. Eu, que estava só no Projeto Providência, recebi a Providens e vi o quão potente era essa união. Hoje as crianças do Projeto Providência convivem com as idosas da Casa Santa Zita e com a Casa de Francisco, que interagem com a Casa de Apoio. A proposta trouxe medos e inseguranças, mas foi importante para a qualidade de trabalho, ampliação dos serviços e união intergeracional dos públicos. A partir da fusão, crescemos e temos mais ações do que antes. Temos dois novos projetos: o Projeto Elos, que atende 820 famílias em vilas e favelas e evita que as crianças cheguem aos Serviços de Acolhimento, prevenindo qualquer forma de violência; e o Projeto Tecendo Proteção, no qual temos 200 idosos acompanhados para que não cheguem a Casa Santa Zita, que é uma instituição de longa permanência.

Nós trabalhamos de forma preventiva para fortalecer os vínculos com os familiares e comunidades para que os idosos sejam vistos como um patrimônio para a família e não um peso.

Além das ações desenvolvidas em várias frentes de trabalho, a Providens hoje desempenha um importante papel na formulação de políticas públicas e na defesa dos Direitos Humanos. A quais fatores você atribui esse protagonismo e reconhecimento?

A nossa missão é fazer mais e com qualidade para quem precisa. Hoje, atendemos os públicos mais vulneráveis de Belo Horizonte: a população de rua, crianças e adolescentes vítimas de violência, e idosos.

Outra frente de trabalho foi o evento sobre Acolhimento Institucional. Participaram crianças e adolescentes que passaram pelo acolhimento institucional e que estão na vida adulta hoje. Foi o primeiro evento do país acerca de um tema que ninguém gosta de tocar. Foi uma contribuição da Providens sobre um assunto que se manifesta por meio da nossa missão: trabalhar com o invisível.

Foto: Guilherme Simões

A Arquidiocese de Belo Horizonte sempre atuou como protagonista na história da educação na capital. A Providens também faz parte deste projeto educacional e abriu em 2024 a quinta unidade social do Colégio Santa Maria, em Ribeirão da Neves. Como se estabelece o projeto educacional da Providens?

Temos o mesmo projeto político-pedagógico das outras unidades do colégio que não são sociais e estabelecemos parcerias para integrar as ações. O ensino de qualidade não tem custo e é oferecido desde o início, integrado com diversas atividades.

Estamos em Ribeirão das Neves, onde o índice de homicídio e de violência é alto e faltam políticas públicas para a juventude. É uma cidade dormitório, ou seja, não há muitas atividades ou emprego. Então, começamos a desenvolver algumas ações como jovem aprendiz. Formamos uma turma e vimos a riqueza daquele lugar [Convivium São José], que seria perfeito para a educação. Levamos a proposta de criação do colégio para Dom Walmor, que desde o princípio topou porque ele tem um cuidado por Ribeirão das Neves. A Arquidiocese de Belo Horizonte leva o que há de melhor, que é a educação oferecida por uma instituição de renome, o Colégio Santa Maria.

Em abril de 2023 passou a funcionar, em caráter experimental, a Casa de Francisco, situada na Região Norte de Belo Horizonte. Como a nova instituição conversa com a missão e os objetivos da Providens?

A Casa de Francisco foi desafiadora, o lugar é o antigo Sanatório e estava abandonado. Fizemos dois mutirões com a comunidade para limpar e arrumar. Fizemos uma horta enorme e os idosos e as crianças dos projetos comem verduras, frutas e vegetais sem agrotóxicos. Virou uma Casa Comum, mas sem prejudicar a flora e a fauna do local. As comunidades do entorno também se beneficiam. As escolas públicas e projetos sociais da região podem frequentar. Tudo na Casa de Francisco é sustentável. Nós não temos energia elétrica, já que funcionamos durante o dia. Os banheiros também são sustentáveis, usamos um sistema que não agride a terra, que nos foi disponibilizado pela Embrapa. As crianças recebem educação ambiental e falamos sobre proteção ao meio ambiente para que as novas gerações cuidem desses últimos espaços verdes que estão na cidade. O nome Casa de Francisco foi dado por Dom Walmor e está ligado à Ecologia integral, importante para o Papa Francisco, onde a cidade tem diálogo com o meio ambiente.

A comunidade Izidora, maior ocupação da América Latina, fica ali, e é composta pelas ocupações Helena Greco, Rosa Leão, Vitória e Esperança. Temos parceria com as lideranças comunitárias do território. As mulheres são fortíssimas; então, quando a Casa de Francisco foi entregue para a Providens, a primeira coisa que eu fiz foi procurar a comunidade no entorno. Dialogamos e solicitamos o apoio delas para proteção daquele local. E tem ainda o quilombo Mangueiras ao lado, que também é um parceiro na proteção do local.

Fica evidente em sua fala a forte presença das lideranças femininas na Providens. De que forma você vê a atuação da gestão feminina nas conquistas alcançadas?

Estou escrevendo o livro Gestão social feminina – Um guia prático. Por que a Providens dá certo? Por que ela cresceu na pandemia? Qual é o segredo? O segredo de uma boa gestão está na questão do fazer com, da horizontalidade, do respeito ao outro, de uma comunicação que não seja violenta, na escuta efetiva, em cada um ter o seu valor. A gente cuida de quem cuida, mas cuidamos também uns dos outros.

E outra coisa que eu digo é que a gente pode cuidar da família e do trabalho, mas o primeiro ponto é que, se eu não estiver bem, não adianta. A gente tem que se colocar na agenda. Isso é fundamental para que a equipe dê conta de atender aos mais vulneráveis. Não é fácil estar na Casa de Apoio, onde temos 60 leitos para pessoas em situação de rua com câncer, com HIV, fazendo hemodiálise. Se você for lá, a equipe está feliz, tranquila e potente, sabendo que o desafio é grande, mas que ela também é olhada e cuidada.

SAIBA MAIS

Art. 227, da CF – É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

Conheça os projetos da Providens:
https://providens.arquidiocesebh.org.br/